SENTIDO REVOLUCIONÁRIO DO TEATRO MUSICAL - 4 (texto final)

SENTIDO REVOLUCIONÁRIO DO TEATRO MUSICAL - 4 (texto final)

‘Olga’ em Gdansk, Polônia

SENTIDO REVOLUCIONÁRIO DO TEATRO MUSICAL (texto final)

Por Gerson Valle

O texto "Sentido Revolucionário do Teatro Musical" foi escrito pelo poeta, escritor e advogado, Gerson Valle. Dividido em 4 partes, o mesmo será publicado semanalmente no jornal Catetear On-line.

PARTE nº4

Pelo século XX adentro inúmeras óperas foram representativas de revoluções estética, social ou política. O expressionismo foi marcante em Richard Strauss, a começar pela peça de Oscar Wilde “Salomé”, que ele musicou na íntegra em uma tradução para o alemão. Strauss teve um notável poeta, Hugo von Hoffmansthal, como libretista em seis de suas óperas, a começar por “Elektra” e a adorável comédia simbólica tendo por base o mundo passado oitocentista “O Cavalheiro da Rosa”.

Alban Berg

Expressionista ainda foi Alban Berg no “Wozzeck” (peça de Georg Büchner), ou Bela Bartok em “O Castelo de Barba Azul”, de Bela Bartok (com libreto de Bela Balazs, que, significativamente, foi dos primeiros críticos importantes do cinema). Cito, a título de exemplos, do repertório já firmado no século XX, "Lady Macbeth em Mtsensk" de Dmitri Shostakovitch, com libreto de Alexandre Preis, "Peter Grimes" de Benjamin Britten, libreto de Montagu Slater, as engajadas obras do comunista Werner Henze, "Nixon in China", (de 1987), de John Adams com libreto de Alice Goodman.

Dmitri Shostakovitch

Um compositor contemporâneo com sucesso em muitas óperas é o norte-americano Philip Glass. Aliás, o espetáculo musical integra de forma evidenciada a cultura dos Estados Unidos. Em 1935 o compositor George Gershwin estreou a primeira ópera caracteristicamente norte-americana, “Porgy and Bess”, com libreto de seu irmão Ira Gershwin e do autor da peça em que o espetáculo se baseou, DuBose Heyward.  Passa-se numa espécie de favela de moradores negros, e sua música, numa bem elaborada orquestração raveliana passa por blues, spirituals, canções pops, que acabaram também difundidas em adaptações populares, como a ária que abre a ópera, “Summertime”.  Um dos mais bem considerados maestros do século XX, Leonard Bernstein, compôs música para concerto e musicais para a Broadway, sendo que sua “West Side Story”, uma atualização da tragédia “Romeu e Julieta” de Shakespeare, com textos de Stephan Sondheim, converge Stravinsky com o jazz e canções. Ainda mais próxima da música operística é seu espetáculo “Candide”, com base na novela de Voltaire, e libreto de intelectuais nova-iorquinos, inclusive ele e Lilian Hellman.

Em 1955, pela primeira vez uma ópera recebeu o Prêmio Pulitzer, “The Consul”, num caso de bem sucedida combinação entre libreto e música, ambos de autoria do ítalo-norte-americano Gian Carlo Menotti. O texto é um libelo contra o totalitarismo de alguns países que impedem a livre circulação de seus cidadãos. Contratado pela rede de televisão NBC, Menotti escreveu a primeira ópera para televisão, o auto natalino “Amahl and the night visitors”, transmitida costa a costa dos Estados Unidos, em 24 de dezembro de 1951, atingindo um público de 5 milhões de pessoas. Durante anos voltou a ser retransmitida no Natal.

O cinema, não só nos efeitos expressamente musicais, mas em sua simbiose das artes, deriva da composição operística. Ao se ler o que Wagner chamava de “Gesamtkunstwerk” (obra de arte integral) parece até que ele estava profetizando a aparição do cinema. E a fusão da trilha sonora foi antecipada em sua colocação orquestral na descrição do drama. Assim, inúmeros compositores de trilhas sonoras foram autores de óperas.

Cena do Filme “Alexandre Nevski” de Einsenstein

A começar pelo célebre Sergei Prokofieff em colaboração com Einsenstein no “Alexandre Nevski” e “Ivan, o terrível”. Cito, dentre eles, Bernard Hermann (de tantos filmes de Alfred Hitchcok) e Nino Rotta (músico-parceiro de Federico Fellini). É natural, por outro lado, que muitos cineastas tenham montado filmes com a produção de óperas integrais, como Ingmar Bergmann, Joseph Losey, Franco Zeffirelli, Francesco Rossi, Otto Preminger, Woody Allen, e até a carreira cinematográfica do excelente diretor Jean-Pierre Ponnelle tenha sido somente de óperas por ele filmadas. Não se pode esquecer, por outro lado, que um dos importantes gêneros de sucesso em Hollywood sempre foi o dos musicais, com danças, cantos e ritmo cinematográfico pautado na própria música. Alguns deles com requintes operísticos, como “An American in Paris” (“Sinfonia de Paris”), de Vicente Minelli com coreografia de Gene Kelly abordando várias peças de Georges Gershwin, inclusive sua suíte sinfônica que dá nome ao filme em um balé de 20 minutos. Ou a peça já aludida “West side story” (“Amor, sublime amor”), dirigida no cinema por Robert Wise. Mais próxima ainda de uma concepção moderna operística é o filme “Les parapluies de Chesbourg”, de Jacques Demy, de 1964, totalmente cantado, do início ao fim, como uma ópera, tendo sido a música de Michel Legrand o ponto de partida como um roteiro, e em cima dela montaram-se os diálogos cantados, realizando-se por fim as filmagens.

Retornemos à indagação inicial de quem vem primeiro, o ovo ou a galinha.

Richard Strauss

Um século e meio após “Prima la musica e poi le parole” de Salieri, em 1942, o compositor alemão Richard Strauss estreou sua última ópera, “Capriccio”, com libreto de Clemens Krauss e dele mesmo, com base numa ideia de retomar o tema da prioridade do texto ou da música num espetáculo operístico. Tal abordagem lhe tinha sido sugerida por seu amigo, o escritor austríaco Stefan Zweig enquanto elaboravam a ópera “A mulher silenciosa”, depois proibida pelo nazismo por Zweig ser judeu.

Quando “Capriccio” foi estreada, Zweig já havia falecido nesta cidade onde me encontro, Petrópolis, no Brasil, tendo cometido suicídio no exílio, entristecido pelos rumos monstruosos do nazismo.

O que, aliás, hoje vemos renascer, dentre outras causas pelo desconhecimento e reflexão sobre a História. Por isto tento isto fazer aqui sobre o espetáculo com música. Há em “Capriccio”, de Strauss, a discussão se é a música ou o drama que deve prevalecer numa ópera. A questão é deixada no ar, enquanto o espetáculo transmite cenas de poesia e música. Como se expressasse não existir na ópera antecedência nem prevalência da música ou poesia, mas integração.

Jorge Antunes

Quero, no final desta minha exposição, exemplificar a expressão revolucionário-existencial do teatro musical, com minha bem sucedida parceria com o compositor Jorge Antunes na ópera “Olga”.

A palavra “múltipla” define bem as intenções de “Olga”. Por estar presente no mundo contemporâneo, sou levado por tendências do Simbolismo, Expressionismo, Surrealismo, Concretismo, e outros tantos ismos, sem que o Romantismo, o Realismo e classicismos abandonem minha participação nas artes de sempre. E assim fui deixado levar por essas diversas correntes, manifestas em separado ou até conjuntamente nas cenas do libreto. Depois, há a multiplicidade do Brasil predominantemente mestiço. Jorge Antunes foi um dos pioneiros na música eletroacústica no Brasil, e prosseguiu sua carreira sempre na vanguarda e experimentalismos da música contemporânea. Além de conjugar sons eletroacústicos com a orquestra sinfônica, concordou em seguir estéticas várias, inclusive com melodias tonais ou modais, que podem até ser assobiadas. A “multiplicidade” teatro-musical de “Olga” a define no mundo de hoje, partindo da própria multiplicidade significativa do Brasil.

Quando cheguei a São Paulo, em 2006, para assistir as seis récitas da “Olga” no Theatro Municipal, encantei-me, já no ensaio geral, com a direção cênica de William Pereira. Fui elogiá-lo e ele me respondeu modestamente: “Não fiz mais que seguir suas rubricas”.

Entretanto, os críticos de São Paulo não me parecem preparados para a inovação revolucionária que eu e Jorge Antunes nos propusemos. Perguntado como eu me sentia diante das seis apresentações com teatro lotado, um público acompanhando a representação teatral e música, com riso, choro e muito aplauso, eu disse achar notável obter sucesso com uns simples versinhos. E por versinhos eu colocava, um tanto ironicamente, a minha intenção antiacadêmica na descrição dramática, com informalismos nos diálogos até na linha de um Nelson Rodrigues, tão representativo em nossa dramaturgia, o circense sempre tão teatral e o distanciamento brechtiano para a reflexão social.

Opera Olga sendo realizada em Brasília

Os críticos, que estavam sem saber o que dizer sobre o fenômeno “Olga”, por não perceberem os versos como pretextos para a música e discurso próprio para a continuidade do espetáculo, acharam mais fácil menosprezaram os versos por si, como se fossem páginas mortas de livro e não teatro vivo.

Na verdade, os versos não se pretendem parnasianamente bem acabados, num espetáculo globalizante que admite mesmo expressões “pop” e abrange um amplo significado político, artístico e atual. A mesma encenação foi repetida e aplaudida na temporada de 2013 do Teatro Nacional de Brasília, e outra concepção cênica provou a eficácia do espetáculo em Gdansk, na Polônia, em 1919 e 2021. Que os críticos se preparem melhor porque a dupla Jorge Antunes/Gerson Valle “rides again”, e o público que se emocionou e aplaudiu a nossa “Olga” nos terá de novo a  seu lado. Acabamos de concluir o texto e a música para um novo espetáculo brasileiro revolucionário. A ópera “Leopoldina”, que servirá para reflexão e prazer teatro-musical sobre os eventos de um Brasil que poderia ter sido a partir da sua independência de Portugal, e que em 2022 completa 200 anos.  Que teatro terá a primazia da estreia? Espero poder comunicá-lo em breve. Obrigado.

Gerson Valle é poeta, escritor e advogado

https://www.facebook.com/gerson.pereiravalle