FANTÁSTICA TRADUÇÃO DE UM LIVRO FANTÁSTICO

FANTÁSTICA TRADUÇÃO DE UM LIVRO FANTÁSTICO

Patriarchi Pudri, Moscou, Rússia

FANTÁSTICA TRADUÇÃO DE UM LIVRO FANTÁSTICO

Por Luiz Carlos Prestes Filho*

Minha irmã Zoia traduziu o romance “O Mestre e Margarida”, de Mikhail Bulgakov. Uma obra monumental da cultura russa que eu não teria coragem de traduzir. Tanto por sua importância para a literatura mundial, como por conseguir o autor, através de 400 páginas, retratar fielmente a complexa Rússia do século 20. Li pela primeira vez este livro em 1978, após entrar no Instituto Estatal de Cinema da União Soviética, onde me formei em Direção de filmes documentários para televisão e cinema. O amigo Serguei Baranov me emprestou uma cópia mimeografada, bem surrada. No curso de literatura, nossa professora tinha apresentado vários títulos de Bulgakov. Este estava vedado para os leitores em geral. Mas na biblioteca do instituto o acesso ao “O Mestre e Margarida” era liberado. Só não podíamos levar o exemplar para casa.

Capa do romance "O Mestre e Margarida", editora Alfaguara

O impacto foi grande. Grande, porque foi uma descoberta. Sobre isso, a Zoia escreve na sua inteligente introdução de apresentação da segunda edição, de 2021, publicada pela editora “Alfaguara”:

“Eu já morava na União Soviética havia mais de dez anos quando tive a oportunidade de ler o romance de Bulgakov pela primeira vez. Convivia com as contradições de um regime que, de um lado, garantia o básico necessário para toda a população, inclusive para nós, exilados, mas, de outro, reprimia o acesso às obras literárias que criticassem as distorções que existiam no primeiro país socialista do mundo”.

Não me esqueço que, ao ler as primeiras páginas do romance, telefonei para uma amiga desde os tempos de colégio, que morava ao lado do Patriarchi Pudri, que é um pequeno lago no centro de Moscou, cercado de edifícios residenciais. Nos encontramos e eu lhe mostrei o livro. Ela sorriu. Claro, já tinha lido. Tanto seu pai como sua mãe, esta uma grande artista do cinema soviético, tinham lhe dado a oportunidade de ler todo Bulgakov. Demos algumas voltas no entorno do Patriarchi Prudi, que para mim sempre tinha sido um local de encontros com colegas de minha escola, tanto no verão como no inverno. Quando as águas do lago congelam, ele se transforma numa pista de patinação.

O realismo fantástico está presente no romance "O Mestre e Margarida"

Desta maneira, as páginas do livro, apesar de ser do gênero fantástico, tinham e tem para mim as grades, as árvores, as águas, os pombos, as portarias antigas e os gritos das crianças do Patriarchi Prudi:

“Na hora de um pôr do sol primaveril, surgiram dois cidadãos em Patriarchi Prudi. O primeiro, com aproximadamente quarenta anos, trajava um costume cinza de verão, era de estatura baixa, cabelos escuros, rechonchudo, careca, na mão portava seu chapéu enroladinho. Seu rosto cuidadosamente barbeado estava ornado de óculos de tamanho sobrenatural de armação preta de chifre. O segundo era um jovem de ombros largos, arruivado, hirsuto, com um boné xadrez caído na nuca, camisa de caubói, calças brancas amarrotadas e pantufas pretas”. (início do romance “O Mester e Margarida”)

Durante aquela minha primeira leitura, a cada página, eu descobria camadas e camadas de uma Moscou conhecida que na verdade eu não conhecia. Lembro que debati com meus amigos no Instituto de Cinema de que era injusto atribuir a Gabriel Garcia Marques a invenção do realismo fantástico. Porque seu livro, “Cem anos de Solidão”, foi escrito na década de 1960. Bulgakov, escreveu o “Mestre e Margarida”, na década de 1930 – 30 anos antes! Imagino que esta minha tese já deve ter sido superada pela crítica especializada. Admito que a comparação entre os dois livros, de autores tão diferentes, pode ter sido um delírio meu. Mas eu discuti muito sobre o fantástico na literatura 40 anos atrás! Lembro que quando a professora contou que Bulgakov, na década de 1920, tinha escrito sobre as chuvas intermináveis de Moscou, fiz uma ligação imediata com as chuvas intermináveis de Marques:

“Choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias. Houve épocas de chuvisco em que todo mundo pôs a sua roupa de domingo e compôs uma cara de convalescente para festejar a estiagem, mas logo se acostumaram a interpretar as pausas como anúncios de recrudescimento. (“Cem Anos de Solidão”).

Capa do romance "Cem Anos de Solidão" em dição na língua russa

A tradução em pauta consegue nos emocionar como nas linhas dedicadas à chuva de dinheiro. Dinheiro que, para Mikhail Bulgakov ajuda a revelar a essência do ser humano. Como se o dinheiro tivesse um poder mágico de transformar tudo ao seu redor:

“Dali a alguns segundos, a chuva de dinheiro ficou cada vez mais densa, atingiu as poltronas e os espectadores começaram a catar os pedacinhos de papel. Centenas de mãos erguiam-se, os espectadores olhavam para o palco iluminado através dos papéis e viam as mais fiéis e justas marcas d’água. O cheiro também não deixava dúvidas: era um cheiro de dinheiro novo, recém-impresso e incomparável por seu encanto. Primeiro a alegria, depois a admiração, tomaram conta de todo o teatro. Por todos os lados soava a palavra ‘notas de dez, notas de dez’, ouviam-se exclamações ‘ah, ah’ e risadas alegres. Alguns já estavam rastejando na passagem, farejando embaixo das poltronas. Muitos estavam de pé nos assentos, tentando apanhar os desobedientes papéis que giravam.”

Nas linhas acima, o perfeito retrato de uma sociedade que se apresentava como não consumista, não capitalista, mas que continuava sedenta por dinheiro. Aqui, como diz Bulgakov mais adiante, a prova de que: “A humanidade gosta de dinheiro, independentemente do que seja feito: de couro, de papel, de bronze ou ouro.”

Personagens do romance "O Mestre e a Margarida" de Mikhail Bulgakov

Claro que a chuva de pequenas pétalas amarelas que cobriu a cidade de Macondo, no livro “Cem Anos de Solidão”, de Marques, “inundando as ruas, emperrando as portas das casas” é diferente das chuvas de Bulgakov. Mas ela, apesar de bela, impedia “a passagem do talvez mais importante cortejo fúnebre”.

Voltei para meus anos de exílio na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) ao ler a tradução de minha irmã. Época quando defendia o socialismo, apesar de ter que ler clandestinamente obras de Mikhail Bulgakov, Boris Pasternak, Alexandre Soljenítsin e de muitos outros autores. Para mim, foram anos decisivos, porque, em especial, os citados nunca tiveram outro interesse que não fosse se doar a seu povo. Todos eles podiam ter uma vida tranquila, caso se acomodassem abaixo das asas do secretário-geral do Partido Comunista da URSS, Josef Stalin ou Nikita Krushev. Escolheram o caminho da verdade. Verdade que não era mais possível esconder na década de 1970 e de 1980, quando ficou evidente o fracasso do regime socialista.

 Nas páginas de “O Mestre e Margarida” lemos:

“As pessoas mais desenvolvidas e mais cultas, é claro, não acreditavam nessas histórias de um diabo que visitou a capital, não participavam dos boatos, riam e tentavam chamar à razão aqueles que contavam as histórias. Porém, o fato era fato, e negá-lo sem explicações não era possível: alguém tinha estado em Moscou. Os restos carbonizados da Casa Griboedov e muitas outras coisas confirmavam o ocorrido com muita evidência. As pessoas cultas defendiam o ponto de vista da investigação: era uma quadrilha de hipnotizadores e ventríloquos, que dominava maravilhosamente bem sua arte.” (Epílogo de “O Metre e Margarida”)

Escultura de personagens do romance "O Mestre e Margarida", Moscou, Patriarchi Prudi

Sim, na década de 1970 eu fazia parte daqueles que não acreditavam nos crimes cometidos pelo regime soviético. Não acreditava no assassinato de milhões de pessoas inocentes em nome da construção de uma sociedade justa e igualitária. Nem mesmo após ter lido “O Mestre e Margarida”. Entendo ser muito importante a oportunidade que o leitor brasileiro tem hoje, no início deste novo milênio, de poder ler a tradução de uma obra premonitória, que anunciou grandes transformações para a Rússia, ainda mesmo no século 20, apesar de atravessar longo período sombrio. A cada página, o leitor poderá confirmar que a violência, a decadência e o terror um dia passa. Foi assim na Rússia, assim será no Brasil, na América e em todos os continentes.

*Luiz Carlos Prestes Filho é jornalista, escritor, diretor de filmes documentários e compositor