Memórias de uma Janela

Memórias de uma Janela

Memórias de uma Janela

Por Márcia Heliane Gomes

As janelas são elementos corriqueiros de nosso cotidiano. Em seu significado formal, são “aberturas nas paredes dos edifícios para deixar passar a luz e o ar”. Mas, em Tiradentes, as janelas são muito mais que isso. Não à toa, as janelas encantam e inspiram tanta gente. Nasci na Rua da Câmara, na descida da Matriz, em frente à casa da ‘vó Guimá’ – Dagmar Moura – minha avó materna e minha madrinha. A casa era da Família Ramalho e foi alugada pelo meu pai, Chiquinho Gomes. Uma casa simples, com móveis muito simples que abrigou, por uns cinco anos, uma família bonita tendo como matriarca Maria José Conceição Gomes. Mulher de estatura baixa, porém de uma fortaleza sem igual. ‘Ô baixinha danada’!...dizia meu pai. Ali, meus pais, eu e meus três irmãos, vivemos uma vida simples.

Nesse tempo de primeira infância passei horas inventando enredos da janela da sala dessa casa, que dava para a rua. Dali via a ‘vó Guimá’, sentada na soleira da porta, fazendo toalhas e colchas de crochê para vender e sempre me chamava para comer um pedacinho da broa que acabava de tirar do forno. Saía para comer a broa e gostava de descer a rua, olhando as pedras, escolhendo em qual pisar com minhas sandalinhas brancas, meu vestido de algodão e minhas fitas de cetim prendendo meu cabelo.

Sobrado Encantado - Foto: Márcia Gomes

E o que mais me encantava era o som do piano, tocado pela Dona Regina, esposa do ‘Seu Joãozinho’, que vinha do Sobrado do João Ramalho. Descia e subia a rua ouvindo aquele som e me imaginava dentro daquele sobrado. Grande demais. Soberbo demais. Rico demais. Mas, de tanta curiosidade de menina, fui para a janela daquele sobrado e me deparei com uma sala enorme, mobiliada com móveis lindos e muitos enfeites. E ali, Dona Regina sentada ao piano, também enfeitado com pano de crochê e muitos bibelôs. Que feliz essa visão, essa descoberta.

E, de tanto ficar nessa janela, todas as tardes, Dona Regina me chamou para colocar os dedos naquele piano que eu olhava tanto. Elogiou meus dedos compridos e magros, prontos para tocar bem aquele instrumento. Me colocou assentada naquele banco fino e meus dedos dedilhavam, a cada dia, com mais vontade e rapidez as teclas pretas e brancas. Foi minha professora de piano. Sentia de perto aquele som que eu gostava tanto e que ouvia de longe. O sobrado – grande demais, soberbo demais, chique demais, passou a ser minha guarita de quase todas as tardes. E, já não era mais tão grande assim. Tão soberbo assim. O conheci por dentro, desvendei seus quartos e a varanda de onde contemplava o final da tarde na Serra de São José. Voltava para casa cheia de som do piano, de sol do fim de tarde, de cheiro do perfume da Dona Regina, da felicidade de estar naquele sobrado. Com meus seis anos, mudamos para a nossa casa na Praça das Mercês, casa que meu pai construiu para abrigar minha família, onde nasceram meus dois irmãos mais novos. E, lembro-me bem quando eles chegaram. Mas, continuei subindo a rua quase todas as tardes para dedilhar o piano da Dona Regina. Cresci, estudei piano por oito anos, mas não consegui ser uma pianista. Nunca pude comprar um piano.

Memórias – delícias que guardamos em algum cantinho da nossa mente e que são despertadas por algum aroma especial, alguma brincadeira, uma brisa leve de verão, uma risada gostosa, um céu rosado de outono. Focar nessas memórias mais doces, as mais vibrantes aquecem nosso coração, porque nossas memórias contam nossa história. Nos ajudam a entender quem somos e os motivos de sermos como somos.

Márcia Heliane Gomes é escritora e poeta