Molhem Minha Goela com Cachaça da Terra de Luiz Carlos Prestes Filho

Molhem Minha Goela com Cachaça da Terra de Luiz Carlos Prestes Filho

Quando na forca pergutaram a Tiradentes sobre o seu último desejo, ele repondeu: "Molhem minha goela com cachaça da terra!"

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Molhem Minha Goela

com Cachaça da Terra

Poema para Orquestra

Idealização, Poesias e Letras das Canções

Luz Carlos Prestes Filho

 

Textos e Pesquisa Histórica

Ivan Alves Filho e Luiz Carlos Prestes Filho

 

Música

Lucas Bueno e Luiz Carlos Prestes Filho

 

Soprano

Julia Félix

 

Arranjos

Lucas Bueno e Luiz Eduardo de Oliveira Pereira

 

Direção Musical

Luiz Eduardo de Oliveira Pereira

 

Esta obra dramático-musical foi inspirada pelo livro "O Caminho do Alferes Tiradentes, uma viagem pelas trilhas dos inconfidentes" de autoria do historiador Ivan Alves Filho

 

Dedico esta obra ao único inconfidente negro, Vitoriano Gonçalves Veloso, e a minha eterna musa inspiradora, Regiane Philadelpho

DE CACHAÇA E MÚSICA - DE GENTES E VERSOS

A P R E S E N T A Ç Ã O

 

“A cachaça não é apenas uma bebida para ser apreciada, é um patrimônio histórico imaterial, produto de nossa cultura miscigenada, parte substancial de nossa História. Com ela, se comemora e se conspira! Com ela, se canta a liberdade, e se registra em cada nota, a Inconfidência de Minas Gerais. A música não é para os ouvidos tão somente, pois tem cheiro, tem sabor, e tem as marcas da História que nos acompanham a cada gole ou trago. A música é da cachaça e da História, é do homem escravo, que nas engrenagens dos engenhos de Minas – e não só de Minas! – deixou sua força e as marcas de sua luta no tempo. A música resgata a história do homem negro destilado na cana da Conjuração Mineira; e nos escondidos e secretos planos contra a Coroa Portuguesa, sua presença se faz sentir no aroma que recende do “sangue fermentado”, e somos tragados para juntos compreendermos o que a História não consegue contar e a música nos revela, com esse novo olhar que nos permite cada nota e cada acorde, cada som na voz-pássara que nos encanta e nos alevanta. Em cada palavra a História se renova; em cada compasso um novo sentimento se confronta aos fatos; nessa obra acontace o encontro das palavras e dos compassos com Minas Gerais da cana e do alambique, resulta esse íntimo degustar novos saberes ainda, para muitos, desconhecidos, e que reafirmam a cultura e os jeitos dessa gente-brasil e desse povo-minas. Aos Poetas e Alferes, e a nossa negra gente que construiu e se rebelou, vêm se juntar Luiz Carlos Prestes Filho, Lucas Bueno, Ivan Alvs Filho, Luiz Eduardo de Oliveira e Júlia Félix para artear o que a vida não consegue; mostrar o que não podia senão pelo aroma dos acordes e versos, pois isso é a arte – sublime encontro do prazer e do saber, da inteligência e da emoção. Por favor, molhem minha goela com a cachaça dessa música!”

Luiz Paixão é diretor de teatro, dramaturgo e poeta

“Molhem Minha Goela com Cachaça da Terra

Poema para Orquestra

 

Idealização

Luz Carlos Prestes Filho

ilustrações - imagens da cidade de Tiradentes

Luiz da Pedra

Alambique Boa Vista

 

Meu corpo moído

Pelas engrenagens do tempo

É cana estraçalhada no engenho

Olhe para a garapa – pense

Sangue correndo

 

Sangue fermentado

Destilado, degustado

Que tem a cor, a textura, o humor

Da verdade que desapareceu

Restou a lenda do sabor

 

Nenhuma imagem minha

Entre as páginas da Devassa

O historiador com suas luvas brancas

Nunca conseguirá encontrar

Minha cor, minha textura, meu teor

 

O Alambique Boa Vista pertenceu a família Tiradentes, foi confiscado pela Coroa Portuguesa e, após a independência do Brasil, em 1822, foi devolvido aos descendentes

 

Evocação

  

Essa cachaça é um pedaço do que passou...

Como conseguiu até aqui chegar?

 

Sendo um pedaço do que restou,

Por que teima toda a História falar?

 

É Amburana, Tapinhoã

É a roda d’água a cantar

 

 

Escritura

Movimento nº1 – Composição Musical

 

Nas faces das pessoas não vulgares vemos o reflexo da vida

Nelas uma ideia, um conjunto que na maioria, despercebida

 

Respostas para mistérios que buscamos desvendar

O lado oculto da lua que da Terra impossível espiar

 

Um jato de luz nas profundezas do oceano

Um rasgo do sistema solar

 

Nas pessoas do incomum...

A bondade que buscamos, a singularidade no olhar

 

Em 1763 o Alambique Boa Vista aparece na História da família Tiradentes, quando uma tia do alferes o adquiriu. Em seguida doou o mesmo ao sobrinho Domingos Xavier da Silva, irmão de Tiradentes. Consta do termo de doação que, se Domingos não tivesse herdeiros, a propriedade retornaria aos seus doadores. Como ele se ordenou padre, o Alambique Boa Vista ficou de posse de outros descendentes. “Eu não sei qual dos antepassados herdou então o engenho”, afirma Rubens Chaves, seu atual proprietário, bisneto do coronel Xavier Chaves. De qualquer forma, sabe-se que que o coronel Xavier Chaves, sobrinho bisneto, por seu turno, da irmã caçula de Tiradentes, Antônia Rita de Jesus Xavier, assumiu o Engenho Boa Vista durante muitos anos, ainda na primeira metade do século XIX. Rubens Chaves informa que parte dessas terras dos parentes dos inconfidentes permaneceu confiscada durante muitos anos. O processo de devolução teve início com Dom Pedro I: “O Imperador veio para a região com o participante da Inconfidência Mineira, José Resende Costa Filho, que cumpriu a pena de dez anos em Guiné-Bissau, e devolveu tudo.” A devolução aconteceu depois de 1822, após a Independência do Brasil.

Link para ouvir na voz de Julia Félix a canção "Escritura":

https://www.youtube.com/watch?v=cAUaHR9-ojk&list=OLAK5uy_nLs2VfXEue7-qohP-gNaSZ8dypYpgFez0&index=1

A Velha Fachada do Alambique

Movimento nº2 – Composição Musical

 

Do Alambique Boa Vista eu era a velha fachada

O reboco do meu corpo despencava

Exposta ao vento, ao sol e à chuva

Todo dia as infiltrações afloravam

 

Lembro que da dor, junto ao telhado, certa vez brotou uma flor

Matos junto à sacada me davam frescor

Tinta desbotada, calha desalinhada

Tanta gente passava e ninguém se importava

 

Aguentei tantos anos de janelas fechadas e aos poucos me entortava

Tudo descascava, escorria, se quebrava

Mas tinha uma viga que me dizia: Aguenta!

Sua palavra era a minha cachaça, me sustentava.

Quem seria o mestre na produção de aguardente ao lado do coronel Xavier Chaves? Seria um homem de coragem como o inconfidente Vitoriano Veloso? O único negro que participou da conspiração mineira. Atras do antigo muro de pedra ficam até hoje os tonéis da Aguardente do Engenho Boa Vista. Cachaça que Tiradentes e Vitoriano Veloso - com certeza - provaram. O Alambique Boa Vista fez parte da fazenda do coronel Antônio Francisco, sobrinho-neto de Tiradentes, que doou parte de suas terras com a condição de que ali se fundasse um povoado. Já no início do século XIX surgia o lugarejo denominado Mosquito. Somente em 1963 Coronel Xavier Chaves torna-se município. A cidadezinha possui, além do Alambique Boa Vista, a bonita Capela de Nossa Senhora do Rosário (erguida provavelmente em 1717; toda de pedra) e o sobrado que pertenceu ao próprio coronel Antônio Francisco. Perto do pequeno centro há um antigo jequitibá cuja a copa mede 45 metros de diâmetro. Coronel Xavier Chaves é o único município brasileiro a ostentar o sobrenome de Tiradentes. A História registra que o primeiro ascendente do alferes Tiradentes no Campo das Vertentes foi seu avô materno. Sabemos que sua mãe já nascera em São José del-Rei (antiga denominação da atual cidade de Tiradentes), de uma família originária de São Paulo ou mais precisamente São Vicente. E sabemos também que seu avô por parte de pai, português, se estabeleceu no Brasil em 1726, exercendo a função de almotacel em Minas. E que seu pai fora vereador em São José del-Rei no biênio 1855-1756. A família Silva Xavier possuía, portanto, um certo enraizamento na região. Foi com grande esforço daqueles que viram suas propriedades sendo arrasadas pela Coroa Portuguesa, que o Alambique Boa Vista sobreviveu e chegou até os dias de hoje.

Link para ouvir na voz de Julia Félix a canção "A Velha Fachada":

https://www.youtube.com/watch?v=2sfMlDOVHKs&list=OLAK5uy_nLs2VfXEue7-qohP-gNaSZ8dypYpgFez0&index=2

Aguardente

Movimento º3 - Composição Musical

 

O que seria aguardente, não fosse o olfato?

Que nos chama, que pede uma aproximação de fato...

O que seria aguardente, não fosse a visão?

Que em cores nos envolve, sedução...

 

O que seria aguardente, não fosse o tato?

Que nos oferece veludo e arrepio de gato...

O que seria aguardente, não fosse o paladar?

Que afirma que a memória tudo consegue guardar...

 

O que seria aguardente, não fosse a audição?

Que faz cristais transbordar pequenas canções...

O que seria aguardente, sem sua origem, seu lugar

Que a cada gole saudades, palpitar...

 

O Alambique Boa Vista é de fato o mais antigo em funcionamento no Brasil. Tiradentes acompanhou seu desenvolvimento, promovido por seu irmão, Domingos. Há quem garanta que o último pedido de Tiradentes, no patíbulo, no Rio de Janeiro, não foi outro senão beber um cálice de cachaça: “Molhem minha goela com cachaça da terra”.

Link para ouvir na voz de Julia Félix a canção "Aguardente":

https://www.youtube.com/watch?v=NZdJyIMF_GU&list=OLAK5uy_nLs2VfXEue7-qohP-gNaSZ8dypYpgFez0&index=3

 Tradição

Movimento nº4 – Composição Musical

 

O caxambu no couro – batida forte tem que aguentar

Com amburana e tapinhoã - fazer o atabaque reinar

Raios no couro do caxambu - aguardente do canaviá

Do Engenho Boa Vista, Vitoriano Veloso - é doce mas pode amargar

Inteligência, sabedoria – das mãos ele vem derramar

Como a água que corre do rio, ninguém consegue parar

Xarope da cana - pela moenda tem que passar

Caldo que depois evapora - o fogo sabe falar

Aguardente no barril descansa - o caxambu vai chamar

Quando acorda a dança régia - ninguém consegue parar

A Coroa Portuguesa fez várias tentativas de proibir a comercialização da cachaça, uma bebida que abalava as vendas da bagaceira e do vinho portugueses. E a clandestinidade passou a fazer parte também do dia a dia dos produtores de cachaça do Brasil durante a fase colonial. Como funciona um autêntico engenho de moer cana-de-açúcar do século XVIII, que praticamente não sofreu nenhuma alteração desde então? “Nós colocamos água naquela roda e é ela que vai tocar a moenda, que esmaga a cana”, explica Rubens Chaves. E prossegue: “E seguida, o caldo cai naqueles ambientes onde há os restos fermentados do dia anterior e a garapa começa a receber imediatamente o processo de transformação do açúcar em álcool. Quanto à destilação, ela comporta três partes: a cabeça, o coração e a cauda. A cabeça é muito forte e a cauda contém impurezas, toxinas. O coração é a parte nobre. Não podemos misturar as três partes e a maneira certa de reconhecer cada uma delas se dá por intermédio da graduação do líquido. Nas condições primitivas que fazemos a nossa cachaça, sem praticamente recurso a instrumentos modernos de medição, nós temos que nos esforçar para que o líquido saia sempre frio, uma indicação de que o fogo está bem controlado. Pelo cheiro, pelo aspecto, se percebe quando está perto do coração”.

Link para ouvir na voz de Julia Félix a canção "Tradição":

https://www.youtube.com/watch?v=FNnYXiriqZA&list=OLAK5uy_nLs2VfXEue7-qohP-gNaSZ8dypYpgFez0&index=4

Gerações

Movimento nº5 – Composição Musical

 

A raiz na escuridão, segura a cana que enverga

A raiz é cega, mas todos horizontes enxerga

 

Nas folhas embaraçadas, no doce sabor do seu fruto

A raiz perpetra sua matriz, em tudo penetra

 

Ao sorver a História dos antepassados

A raiz a vida orquestra, enverga, não quebra

“Depois de destilada, a cachaça é guardada em um compartimento de alvenaria. Nós passamos parafina nele e conservamos a bebida ali. Passamos parafina com pincel até fazer uma película mínima de 4 a 5 milímetros. Com isso, a cachaça vai descansar em um ambiente neutro, não pega gosto de nada. Nos barris de carvalho, a cachaça muda de gosto, muda o cheiro e muda também de cor. Ela fica substancialmente alterada. A minha cachaça não tem vergonha de ser cachaça, ela vem branquinha como saiu da destilação”, conta Rubens Chaves que afirma que seu alambique é um “museu vivo”.

Link para ouvir na voz de Julia Félix a canção "Gerações":

https://www.youtube.com/watch?v=W8b_lMnYFI8&list=OLAK5uy_nLs2VfXEue7-qohP-gNaSZ8dypYpgFez0&index=5

 

Epílogo

Movimento nº6 – Composição Musical

 

Quem se aproxima do Campo das Vertentes

Sente a Cachaça Boa Vista no ar

Se pergunta como ela consegue

Tantos quilômetros alcançar?

 

O que ela quer acordar?

Por que esse seu desbravar?

Que sentidos inconfessos

Ela quer desabrochar?

 

Quem se aproxima do Campo das Vertentes

Escuta a roda girar

Se pergunta como ela consegue

300 anos corrupiar

 

Sua força vem da coragem

Dos Inconfidentes?

Ou da futura cachaça

Que será mais pura que uma promessa?

No Engenho Boa Vista há uma magnífica roda d’água. Fica na parte de trás da sua belíssima construção. Ela que faz girar a moenda, triturando a cana como em meados do século XVIII.

Link para ouvir na voz de Julia Félix a canção "Epílogo":

https://www.youtube.com/watch?v=_zn-zCTNwD0&list=OLAK5uy_nLs2VfXEue7-qohP-gNaSZ8dypYpgFez0&index=6

PÓSFACIO

 

Sete são os sinais gráficos sonoros que organizam a linguagem musical. Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Sí. São sete, também, as etapas de produção da cachaça: Plantação; Colheita; Moagem; Fermentação; Destilação; Armazenamento e Envelhecimento; Engarrafamento e Rotulagem. Há tempos cunhei a expressão de que música é o idioma da alma. Já a dança é o idioma do corpo. Assim sendo, palavras expressam a mente. Em poemas ou formando o canto, elas exprimem o falar do coração. Unir estas perspectivas é um desafio significativo. Luiz Carlos Prestes Filho e Lucas Bueno, a voz da soprano Julia Félix, venceram o desafio ao realizar o Poema para Orquestra “Molhem minha goela com cachaça da terra”, composta em seis movimentos musicais.

Seria um a menos do que a quantidade de notas musicais? São sete as etapas na produção da cachaça. Faltaria um movimento? Não! Os sete movimentos estão completos. Creio, curiosamente, que os perspicazes autores e a interprete deixaram para a plateia o sétimo movimento: o brinde!

 "Essa cachaça é um pedaço do que passou…

Como conseguiu até aqui chegar?

 

E sendo um pedaço do que restou,

Por que teima toda a História falar.”

 

Protásio Ferreira e Castro - in memorian - foi Engenheiro Civil e Estudioso de Teoria da Música

 

Luiz Carlos Prestes Filho é formado em Direção e Roteiro de Filmes Documentários

Molhem Minha Goela com Cachça da Terra

@luiz carlos prestes filho - todos diretos reservados ao autor - é proibida a reprodução ou transmissão desta obra, ou parte dela, por qualquer meio, sem prévia autorização do autor

@Todamérica Edições LTDA

MEMÓRIA CRÍTICA

Musical da mais Alta Qualidade

Ouvi MOLHEM A MINHA GOELA COM CACHAÇA DA TERRA como se estivesse deliciando uma santa cachaça. É poesia, é dança, é História, é terra. Enfim, é um musical da mais alta qualidade que, nas mãos de um bom diretor teatral pode dar um excelente espetáculo. Um MUSICAL CABOCLO, para ser montado num palco de teatro ou ser transformado num filme. Tomo a liberdade de sugerir a divisão do texto entre dois solistas, um homem e uma mulher, ambos bailarinos, e que se juntam no último movimento. O texto em prosa pode ser alocado, também, para um Madrigal Falado. Abusando um pouco mais em palpites (e me desculpando), os excelentes músicos que trabalharam nas composições, poderiam, ainda, escrever uma mínima ABERTURA. Enfim, existem muitas possibilidades. Parabéns a todos participantes deste projeto.

Ricardo Tacuchian é maestro e compositor, Doutor em Música pela University of Southern California; foi presidente da Academia Brasileira de Música (ABM).

Misto de Brasilidade om Resquícios Russos

 “As melodias da obra MOLHEM MINHA GOELA COM CACHAÇA DA TERRA foram bem escritas, os arranjos bonitos e bem cantados. As canções tem um misto de brasilidade com resquícios melódicos russos em diferentes proporções. São muito visuais – poderiam compor um musical, um vídeo, um filme. Acho que se tivesse dança/projeção de fotos durante o concerto, seria perfeito. As canções, texto e poesias são multimidiáticas no sentido de englobarem multiformas de arte. A obra é multidisciplinar e profunda. Conheço o Engenho Boa Vista. Conversei com os proprietários sobre a região, sua História em longas tardes regadas a café, pão de queijo, broinhas de fubá. Guardo uma garrafa da Boa Vista n minha casa.”

Silvia Berg é compositora de música contemporânea. Graduou-se na Universidade de São Paulo (USP). Recebeu em 1984 uma bolsa de estudos do CNPQ que lhe permitiu prosseguir sua formação na Europa. Estudou regência na Dinamarca, na Universidade de Copenhague; é professora do Departamento de Música da USP

Entre o Erudito e o Popular

“MOLHEM MINHA GOELA COM CACHAÇA DA TERRA é um trabalho muito simpático de autoria de Luiz Carlos Prestes Filho e Lucas Bueno. O mesmo demonstra que os autores resolveram ingressar no gênero que eu chamo de sub erudito. Isso porque, ao conservar a bossa e a genialidade da música popular, acrescentam arroubos que encostam na música clássica. Não tenho dúvida que os arranjos de Luiz Eduardo de Oliveira, atenderam a proposta dos compositores. Completando este quadro bastante original, louve-se a voz da soprano Julia Félix, que é bastante ágil, e se destaca nesta transição de um estilo para o outro. Ela consegue manter a leveza do popular e imprimindo a técnica vocal perfeita do canto lírica. A frase, MOLHEM MINHA GOELA COM CACHAÇA DA TERRA pertence a Tiradentes. Ela serviu como ponto de partida, como inspiração para a realização deste trabalho musical que, por certo, será devidamente analisado pela crítica. Estamos frente a uma bela homenagem aos 200 anos da Independência do Brasil de Portugal!”

João Roberto Kelly, o Rei das Marchinhas de Carnaval, é compositor e professor de harmonia

Uma Idéia Revolucionária

"Luiz Carlos Prestes Filho nos traz uma ideia teatral revolucionária com sua obra MOLHEM MINHA GOELA COM CACHAÇA DA TERRA. Para começar pelo tema da inconfidência mineira, que, por mais citada após a instauração da República ainda não foi devidamente esgotada em sua riqueza de ideias e eventos. Depois pela abordagem de seus versos, enfatizando, inclusive, uma frase no título que seria do Tiradentes onde aparecem motivos culturais da terra brasileira, que se buscava libertar. Um empreendimento justo seria o de passar as ideias artístico-políticas-revolucionárias-históricas que aqui correm para um espetáculo teatral, que ergueria, sem dúvida, uma ópera digna para os novos tempos."

Gerson Pereira Valle, é poeta e advogado

Bravissímo

"Bravíssimo pelo musical MOLHEM MINHA GOELA COM CACHAÇA DA TERRA. Ele forma um todo harmonioso, e dá vontade de ouvi-lo, novamente. As letras são muito bonitas -- a cachaça ganha vida e a música acompanha-a muito bem, por vezes ressaltando o seu aspecto irônico, melancólico ou dramático."

Roseane Yampolschi é compositora e professora

Notável ousadia na concepção da obra, pelo arrojo na ressignificação poética

Todos os povos exaltam seus heróis nacionais como exemplos de grandeza humana. Criam monumentos materiais e imateriais para relembrar seus feitos, e realizam cerimônias que são protocolos civilizadores. Isto resulta de uma sabedoria acumulada ao longo da história. A pessoa orgulha-se das atitudes honrosas de seus antepassados. Diante deles revigora sua autoestima e se motiva a ser do mesmo nível. Assim, estátuas, templos e obras de arte são símbolos que fixam ideais elevados, firmam padrões humanizadores da sociedade e sedimentam a identidade coletiva. A reverência a vultos notáveis do passado educa, inspira e pavimenta o chão pelo qual vamos nos deslocar. Sem marcos virtuosos, abre-se espaço para os instintos animais. Demolida a identidade, vamos nos enfraquecer e dispersar, correndo atrás de interesses egoístas e grosseiros, da vaidade fútil, da competição selvagem, e da banalização da vida.

Atualmente há uma campanha terrível para destruir a imagem do Brasil e dos brasileiros. Tentam nos convencer de que, como povo, não temos qualquer mérito ou qualquer futuro. A demolição de valores da nossa terra se espalha pelas tradições, pela mídia, pelo consumo, pela música. Tudo parece convergir para uma estratégia de reduzir o Brasil a um país sem memória. E isso não vem de hoje. Já há 230 anos, a justiça portuguesa fez tudo para varrer da memória dos brasileiros a lembrança dos inconfidentes. Pelo crime hediondo de atentar contra o rei, recaíram sobre eles as prisões, o exílio e a expropriação dos bens. De Tiradentes não restou sequer moradia, túmulo ou ossos.

O poema musical de Luiz Carlos Prestes Filho traz uma visão radicalmente oposta: desvenda a poderosa energia nacional que brota da terra e aflora no suco dos canaviais que “é doce, mas pode amargar”. O canto em tom da “Tradição” nordestina se junta à batida firme no couro do atabaque construído com madeira de lei nativa, amburana e tapinhoã, que convoca a todos para uma indomável arrancada da lucidez, “como a água que corre do rio e ninguém consegue parar”. O Alambique Boa Vista, na despretensiosa singeleza de sua construção, é abraçado com carinho e respeito, como monumento representativo de um grande momento de nossa história. Sob seu teto o visitante encontra Tiradentes, os inconfidentes e sua saga. Da viva voz deles ainda ressoa a declaração ao país, confirmada pelo testemunho de seu sacrifício extremo: “Verás que um filho teu não foge à luta”. “Nem teme, quem te adora a própria morte”. Vivificados pelo espírito dos nossos heróis, nos imbuimos do sentido de nossa missão, no empenho incansável para que “o sol da liberdade em raios fúlgidos” brilhe no céu da Pátria. O Alambique nos comove como local ímpar de visita reflexiva sobre nossa própria história.  Sua serenidade secular suscita um turbilhão de afetos, emoções, significados, reflexões, amadurecimento, promessas, gritos, indignação, resistência, conclamação, abertura para o futuro. Na modéstia dessa construção está a ideia de um mundo melhor, um ideal moderno e universal de justiça e amor. Este local nos diz muito dos problemas que hoje enfrentamos no Brasil. De suas velhas paredes saem raios de luz, que se expandem por serras e planícies na imensidão do País. “Quem se aproxima do Campo das Vertentes, sente a Cachaça Boa Vista no ar. Que sentidos inconfessos ela quer desabrochar?”

A obra dramático-musical “Molhem minha goela com cachaça da terra”, está perfeita. Dentre todos os trabalhos de Luiz Carlos Prestes Filho, deste é o que mais gosto.  Texto em novo patamar de amadurecimento estilístico. As inflexões melódicas, que a cada passo ampliam o horizonte de seu voo, trazem o caráter da música popular brasileira, e revelam extraordinária habilidade rítmica, ao conseguir lidar com a assimetria da fala. No calor do gesto melódico e no balanço dos gêneros nacionais, a presença de nossa etnia multicor.

Há notável ousadia na concepção da obra, pelo arrojo na ressignificação poética de muitas de suas ideias fundamentais. Apesar da grande diversidade de imagens e associações, consegue atingir simplicidade e organicidade, o que faz do poema musical um todo monolítico de sentido e de forma.

Hélio Sena é compositor e professor formado pelo Conservatório Tchaikovsky, Moscou, Rússia

Vitoriano Veloso - O Inconfidente Negro

Ana Paula Gatti é advogada

 

Esse artigo chama a atenção para a necessidade de um olhar atento sobre a contribuição negra durante o levante da inconfidência mineira. Embora pouco presente nos livros que relatam o movimento libertário e separatista da conjuração mineira, é importante ressaltar que entre os inconfidentes havia o negro Vitoriano Gonçalves Veloso. A busca por liberdade e igualdade de direitos representadas pelo Iluminismo influenciaram em grande parte:

  • a Revolução Americana,  declarada em 04 de julho de 1776, onde a elite colonial agiu para manutenção de seus interesses.
  • a Revolução Francesa  iniciada em 1789, que impulsionou a burguesia para frear o absolutismo e impor regras e limites a atuação do estado;
  • a Inconfidência Mineira deflagrada em 1789, onde os mineiros conjurados se rebelaram contra os abusos fiscais da coroa portuguesa.

Podemos notar que os três fatos históricos, ocorridos em regiões geográficas diferentes, tem entre si um ponto em comum, todos exaltam a liberdade como alavanca propulsora, constituindo direitos fundamentais que os doutrinadores futuramente chamaram de direitos de primeira dimensão, que constituem um conjunto de caráter negativo impondo limites a atuação do Estado diante do cidadão. Enquanto a Revolução Americana e a Revolução Francesa defendiam a liberdade em harmonia com a igualdade social, é importante pontuar que a Inconfidência Mineira mantinha o foco na liberdade de exploração econômica e no combate aos abusos impostos pela corte em sua política tributária.

Por ser um imposto extremamente oneroso havia grande taxa de inadimplência no pagamento do imposto e a Coroa Portuguesa passou a utilizar-se da ‘derrama’ para cobrança dos valores atrasados, muitas vezes confiscando bens dos devedores, e sem sombra de dúvidas esse era o principal motivo da revolta dos conjurados mineiros. Uma vez contextualizada as dores e os ideais das revoluções no final do século XVIII, nos cabe retornar a Inconfidência Mineira e tentar compreender a participação de Vitóriano Gonçalves Veloso, único negro entre os inconfidentes.

Neste período ocorreram fatos importantes, a Constituição Americana estava sendo redigida e já garantia liberdades fundamentais aos cidadãos dos EUA, a Revolução Francesa propagava seus ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, e a Inconfidência Mineira clamava por ‘liberdade ainda que tardia”, mas é preciso ter clareza, que negros ainda eram mercadorias, eram juridicamente considerados ‘coisas’, constavam nos inventários e nos livros contábeis como peças do patrimônio dos senhores escravagistas.

O contexto histórico e os autos dos 11 volumes do processo de devassa demonstram que as pessoas envolvidas na Inconfidência Mineira não estavam comprometidas com ideais abolicionistas, logo, não podemos afirmar que os ideais de liberdade fossem a fonte da motivação de Vitoriano Veloso. Ao realizarmos um recorte na soma do patrimônio de 7 conjurados da Comarca de Rio das Mortes que tiveram seus bens sequestrados pela Coroa Portuguesa; podemos notar que havia 442 negros escravizados que foram apreendidos pelo Estado (RODRIGUES e FREIRE, 2018).

Os demais inconfidentes presos tiveram 54 escravos apreendidos: Cláudio Manuel da Costa (31), José da Silva e Oliveira Rolim (7), Tiradentes (5), Francisco de Paula Freire de Andrada (5), Domingos de Abreu  Vieira  (4),  Luís  Vieira  da  Silva  (1)  e  Vicente  Vieira  da  Mota (1). Os cativos desses proprietários corresponderam a 12,22% do total dos escravos dos sediciosos mineiros, enquanto os cativos aqui analisados  representaram  87,78%  de  todos  os  mancípios sequestrados  pela  devassa.  Os  demais  presos  –  Tomás  Antônio  Gonzaga,  José  Álvares  Maciel,  José  de  Resende  Costa  Filho,  José  de  Oliveira  Lopes,  Salvador  Carvalho  do  Amaral  Gurgel,  Domingos Vidal de Barbosa Lage, João da Costa Rodrigues, João Dias da Mota e Vitoriano Gonçalves Veloso – não tiveram nenhum escravo  apreendido  em  seus  patrimônios  (Cf.  ANRJ/ADIM-C5,  v. 7 – sequestros diversos).[1]

Os registros históricos encontrados até aqui não apontam que houvessem  interesses econômicos e financeiros que ligassem a pauta  fiscal dos conjurados a situação econômica de Vitoriano Veloso. João Pinto Furtado ao escrever o artigo ‘verbete inconfidência mineira’ nos traz sua visão historiográfica dos personagens da Inconfidência mineira e assim nos descreve suas participações:

Aos diversos participantes estariam destinadas algumas tarefas preferenciais: a implementação efetiva das estratégias de divulgação e a condução da ofensiva militar caberiam a Tiradentes e a Francisco de Paula Freire de Andrade; a Inácio José de Alvarenga Peixoto, Padre Rolim e Carlos Correia de Toledo em consórcio com Francisco Antônio de Oliveira Lopes caberiam, respectivamente, a articulação da defesa contra as forças que proviessem de São Paulo, da Bahia e do Rio de Janeiro; a Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manoel da Costa e ao Cônego Luís Vieira da Silva caberia a elaboração de um corpo constitucional provisório; ao velho Coronel Domingos de Abreu Vieira e José Aires Gomes caberia vultuosa contribuição financeira para compra de pólvora e armas; a José Alvares Maciel caberia coordenar o processo de produção de armas e parte da elaboração legislativa. Outros, como Luís Vaz de Toledo Piza, Vicente Vieira da Mota e Vitoriano Gonçalves Veloso eram figuras de menor grandeza, com funções auxiliares e gravitando em torno de parentes ou patrões mais decisivamente ligados à trama. (FURTADO)

Dos poucos registros históricos sobre Vitoriano Gonçalves Veloso, sabe-se que nasceu em 1738 no distrito de Prados – MG. Filho de mãe escravizada e pai branco reza a oralidade que recebeu alforria na pia batismal. Como profissão exerceu o oficio de alfaiate mas tornou-se alferes[2], assim como Tiradentes.

Vitoriano Veloso foi vizinho e compadre da abastada conjurada D. Hipólita Jacinta Teixeira de Mello, que foi uma rica fazendeira do munícipio mineiro de Prado, informação que nos ajuda compreender a linha de raciocínio de João Pinto Furtado, embora não a fundamente.

Por outro lado, há relatos que confirmam que Vitoriano Veloso era um mensageiro hábil que detinha a confiança dos conjurados, consta dos autos da devassa informações sobre sua habilidade em montaria e logística. Vitoriano Veloso foi interrogado 8 vezes durante sua prisão, que ocorreu durante tentativa de informar conjurados sobre a captura de Tiradentes e a traição de Joaquim Silvério dos Reis. Na devassa foi documentado que em uma das viagens de Vitoriano Veloso, ele percorreu em montaria 240 quilômetros em 3 dias e 2 noites, portando informações estratégicas da tentativa revolucionária, o que não sugere uma participação de menor grandeza (O Outro Alferes, 2019).

Há uma invisibilidade nos registros sobre a participação de Vitoriano Veloso na conjuração Mineira, e são muitas as perguntas que seguem sem respostas; em contrapartida, o que se tem fartamente documentado é a severidade de sua sentença. Tiradentes líder do movimento foi cruelmente executado por enforcamento e esquartejado, seus restos mortais foram expostos em praça pública. A segunda maior pena aplicada foi a de Vitoriano Veloso, sentenciado a “tortura mediante açoite, como pena adicional por ser negro. Foi chibatado enquanto dava três voltas aos pés da mesma forca que havia matado o mártir da inconfidência “ recebendo ainda pena de banimento, foi deportado para Moçambique onde morreu em exílio. (O Outro Alferes, 2019)

Cecilia Meireles na coletânea Romanceiro da Inconfidência, em seu poema Alferes Vitoriano narra a sentença de Vitoriano Gonçalves Veloso (MEIRELES, 2015, p. 119)

"Não houve quem o livrasse

 de dar três voltas à forca;

 de gemer pela cidade

 pena de açoites sem conta;

 nem de partir para a viagem

 de degredo, amarga e longa."

 

"E a carta nem fora entregue!

Nem fora o recado escrito!

- No seu cavalo, tão leve!

- Na masmorra, tão perdido...

 Que imensas lágrimas bebe,

 por ter prestado um serviço! "

Placa Memorial no Município Vitoriano Veloso (MG), conhecido como Bichinho, localidade vizinha a Tiradentes, antiga São José del-Rei 

Considerações

Se passaram mais de 200 anos e a relação entre Vitoriano Veloso e os Inconfidentes nos convida a revisar o Brasil e entender que como nação ainda não fizemos a nossa ‘lição de casa’.  Nos falta dar respostas à diversas lacunas da nossa história. Nos cabe conhecer e descrever o passado, pontuar e entender o presente e enfim; estarmos aptos a editar nosso futuro.

Dois séculos se passaram e o Brasil que conquistou sua independência ainda debate uma reforma tributária, o Brasil que aboliu a escravidão ainda sofre com o racismo, o Brasil que é um Estado Democrático de Direito onde todos são iguais perante a lei, ainda enfrenta a seletividade penal e o punitivismo baseado na cor da pele, o Brasil de maioria populacional preta insiste em invisibilizar a contribuição negra na construção desse país.

Referências:

FURTADO, J. P. Verbete Inconfidencia Mineira. FAFICH UFMG. Disponivel em: <https://www.fafich.ufmg.br/pae/apoio/verbeteinconfidenciamineira.pdf>.

MEIRELES, C. Romanceiro da Inconfidência. 13. ed. São Paulo: Global Editora, 2015.

O Outro Alferes. Portal Agora, Setembro 2019. Disponivel em: <http://www.agora.com.vc/noticia/o-outro-alferes/>.

RODRIGUES, A. F.; FREIRE, J. O preço dos escravos e suas “cores” nas escravarias dos inconfidentes mineiros da comarca do Rio das Mortes, nas Minas Gerais de 1789 a 1791. Estudos Ibero-Americanos, v. 44, p. 548-562, Dezembro 2018. ISSN 3.

[1] Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 44, n. 3, p. 550, set.-dez. 2018.

[2] Alferes  era um cargo equivalente a subtenente.