Saída - Arthur Guimarães

Saída - Arthur Guimarães

O número de apartamentos de um andar aponta para a modéstia ou opulência.

 

Urgências Literárias - CAPÍTULO 3

SAÍDA

Por Arthur Guimarães

Entrar na casa dos outros é sempre uma atitude que requer cuidados. Por mais íntimo que sejamos conhecidos “da casa”, não temos a mesma espontaneidade como a que temos quando entramos na "nossa casa". Quanto mais quando adentramos o lar de alguém que não conhecemos... Há sempre a angústia quase subconsciente de "querer conhecer o terreno em que se pisa". A busca por pistas que nos levem a antecipar a situação que em breve se apresentará aos nossos olhos já começa na portaria do prédio: se é luxuoso, esquisito, convencional...; a postura do porteiro: se é indiferente, atencioso, bronco, excessivamente cordial, ou se já nos espera fora do prédio (um sinal de mau prognóstico); elevadores... – bom, estes geralmente são pequenos! Ninguém projeta um prédio, pensando em pessoas na posição horizontal. No corredor, já obtemos uma boa idéia do que vamos encontrar pela frente. O número de apartamentos de um andar aponta para a modéstia ou opulência. Abre-se a porta, o pano cai. Ilumina-se o palco a começar pela  pela sala :– o primeiro ato! Às vezes o único, se o protagonista já se encontrar naquele cômodo, precipitando a decisão final: - se vai na ambulância ou se fica – pois, consciente ou não, já se encontra perto da porta, o que facilita sua saída.

O número de apartamentos de um andar aponta para a modéstia ou opulência

Outras vezes, encontramos o nosso objetivo final em seu quarto, escritório ou no banheiro (outro mau sinal!), circunstâncias que geralmente prolongam  o atendimento, pois caracterizam certa resistência a abandonar o seu “castelo”, sua zona de conforto, exigindo do atendente uma habilidade de negociação, cujo prêmio será a brevidade da sua viagem, o que vai deixá-lo mais disponível para novas ações. – Este é o paradoxo do bom plantonista: “torne seu trabalho eficiente para poder trabalhar mais”!

Estas conjecturas revelam a complexidade da missão de invadir o espaço e tomar decisões a respeito da vida alheia. Impõe-se a imagem de isenção e sobriedade, caso contrário, o envolvimento com questões emocionais e circunstâncias paralelas podem afastar o atendente dos objetivos da missão. Por outro lado, a insensibilidade poderá provocar um desastroso distanciamento que poderá, por sua vez, inviabilizar uma conveniente negociação.

Fica claro então que nessas circunstâncias o foco deve ser mantido no astro principal. Só ele existe, só as mazelas dele têm importância, só suas necessidades são válidas; abstraem-se demais evidências: a tosse do vizinho, a pressão alta da irmã, a angina da empregada – consideradas “armadilhas do diabo” para afastar o atendente da nossa nobre missão.

É bem verdade, que se o atendente não evidencia logo as prioridades da sua missão, deverá pagar o preço pelo desvios ao seu objetivo: Não concentrou suas atenções ao seu cliente? Pois bem, vai ter que auscultar e medicar o vizinho, medir a pressão da irmã e se comprometer com um encaminhamento para a empregada...às 2h e 30min da manhã! Com o tempo ele aprende!

É bem verdade, que se o atendente não evidencia logo as prioridades da sua missão, deverá pagar o preço pelo desvios ao seu objetivo: Não concentrou suas atenções ao seu cliente? Pois bem, vai ter que auscultar e medicar o vizinho, medir a pressão da irmã e se comprometer com um encaminhamento para a empregada...às 2h e 30min da manhã! Com o tempo ele aprende!

O Dr. Brito já havia aprendido há muito. Com certeza, muito antes de mim. Médico exemplar, e pessoa da melhor qualidade. Nunca o vi de mau humor. Não o imagino circunspecto ou indeciso. Bombeiro, emergencista, tomador de decisões e extremamente sereno e gentil em sua postura. Tem defeitos? Deve ter, mas tenho dificuldades em me lembrar de algum. Uma característica: um intestino tão objetivo quanto ele mesmo...Cruzou talheres-dará a descarga! Este aspecto lhe rende eventuais deboches no plantão, pois é uma presença garantida no banheiro.

- Quem está aí? –Ah! Claro, o Brito! 

Suas incursões escatológicas atingem dimensões intercontinentais. Uma vez assistíamos algum documentário sobre construções glamourosas de Nova Iorque, quando Brito exclamou:

- Ih! Olha lá o Waldorf Astoria!

- Você conhece?

- Já usei o banheiro lá uma vez!

E também uma garantida referência turística gastronômica:

- Brito, já usou algum banheiro em Cais de Sta Rita?

- Já! Por que?

- Por nada...tchau.

Podes crer, tem restaurante por perto!

Por este perfil, pode-se imaginar a angústia do colega, quando foi surpreendido na porta do banheiro, já com o jornal na mão, após um generoso jantar..:

- MÉDICO DE PLANTÃO – SAÍDA URGENTE!

- Artur, você pode ir?

- Não Brito, tou num atendimento...

Sem opção, não questionou. Abortou a missão em prol de outra mais nobre, largou o jornal e embarcou na ambulância com as vísceras retorcendo. O chamado era próximo. Menos mau. O porteiro na esquina. tanto pior. Elevador pequeno, apartamento 608 – fim do corredor - paciente... na sala? Não. No quarto – deitada no chão, pálida, a filha chorando. Experiente, pensou rápido e avaliou: vítima sonolenta, responsiva, respirando, pulsos presentes, hipotensa. Começou a delegar tarefas:

Ao motorista:

- Apoie a cabeça dela de lado, mantenha assim

Ao auxiliar:

- Monitorize a senhora, puncione uma veia, vamos correr um Ringer

À filha:

- Senhora, fique segurando este soro assim,bem alto. Tem papel no banheiro?

- Tem. Quer que eu traga?

- NÃO. ESPERA AÍ QUE EU VOLTO JÁ!

Sentado no vaso, deve ter ficado imaginando a cara da filha, qual estátua da liberdade, aguardando ansiosamente seu retorno...e a cara de naturalidade que teria que fazer para encará-la e finalizar o atendimento.

Arthur Guimarães é cardiologista