A INDEPENDÊNCIA E SEU PATRIARCA DERROTADO

A INDEPENDÊNCIA E SEU PATRIARCA DERROTADO

José Bonifácio - Patriarca da Independência

A INDEPENDÊNCIA E SEU PATRIARCA DERROTADO

Por Luiz Rodrigues Corvo

O PROJETO DE JOSÉ BONIFÁCIO OBSTADO PELAS FORÇAS DO ATRASO E DA CORRUPÇÃO

Em 2022 vamos comemorar os 200 anos do Grito do Ipiranga, com que o príncipe D. Pedro proclamou a separação do Brasil do seu colonizador, Portugal. Por seu papel de relevo nesse episódio, o santista José Bonifácio de Andrada e Silva recebeu o epíteto de Patriarca da Independência, que pela primeira vez foi mencionado em uma carta escrita em 1822 pelo general Labatut.

General Labatut por Oscar Pereira da Silva - José Rosael/Hélio Nobre/Museu Paulista da USP

Não obstante esse cognome honroso, as ideias apresentadas por José Bonifácio para construir a nação e o estado brasileiro independente foram obstadas pelas forças do atraso social e da corrupção e da intriga palaciana. Daí poder afirmar-se que a História o tornou um patriarca derrotado. Se vencedor fora, o Brasil hoje seria muito diferente.

José Bonifácio era homem de sólida formação universitária e cultural. Ainda jovem foi para a Europa, onde viveu por 30 anos: formou-se em direito, matemática e filosofia pela Universidade de Coimbra; após, ingressou na Academia de Ciências e Letras de Lisboa, exercendo o cargo de secretário até voltar para o Brasil

Por um trabalho acadêmico a respeito de pesca e extração de óleo de baleia (usado para iluminação na época), ganhou bolsa de viagem: tal lhe permitiu frequentar as escolas de minas de Paris e de Freiburg e realizar estudos e pesquisas na Suécia e na Dinamarca; voltando a Portugal, criou a cadeira de metalurgia em Coimbra, da qual foi o primeiro catedrático. Além dos conhecimentos científicos, possuía uma clara visão de direito público, de direito civil e de história; e uma cultura geral abeberada na leitura de Aristóteles, Sêneca, Cícero, Plutarco, Tácito, Virgílio, Tito Lívio, Bacon, Leibnitz, Bayle, Montesquieu, Fenelon, Hume, Gibbon, Herder, Buffon, Meister, Voltaire, Rousseau. Também poeta, conhecia as obras de Luís de Camões e do padre Antônio Vieira.

Narcisa Emília O’Leary e filhos

Esposou Narcisa Emília O’Leary, mulher à frente do seu tempo – na sociedade machista do começo do século XIX, ela frequentava salões desacompanhada e em público fumava e tomava aperitivos; teve uma filha (Gabriela) com o marido e não hesitou em criar uma outra menina (Narcisa Cândida), fruto de aventura de “M. D’Andrada” (como José Bonifácio era conhecido na Europa) com uma amante. Aliás, teve ele muitas amantes, no exterior e no Brasil – um grande número delas negras. Nessa preferência pelo sexo entre raças diferentes mostrava coerência: antevendo o futuro, os nossos dias – em que 56% dos brasileiros são afrodescendentes, milhões produtos da miscigenação  – o ilustre santista vaticinava, antecipando-se a Rondon e Freire, a respeito da formação do povo brasileiro:  “o mulato deve ser a raça mais ativa e empreendedora, pois reúne a vivacidade impetuosa e a robustez do negro com a mobilidade e sensibilidade do europeu”.

As ideias de José Bonifácio para a construção de um Brasil independente podem ser encontradas, basicamente, em três trabalhos: (i) “lembranças e apontamentos” para os deputados brasileiros às Cortes Portuguesas, escrito ainda antes da Independência; (ii) projeto apresentado à Assembleia Constituinte, em 1823 (após a Independência), a respeito da questão indígena; (iii) outro projeto, submetido à consideração da mesma Assembleia, relativo à escravatura. Há outros escritos em que as suas reflexões são expostas, de maneira esparsa — infelizmente, não nos deixou uma obra reunindo-as de forma sistemática.

Nos curtos limites deste comentário, cabe apenas uma tentativa de sintetizar os pontos essenciais do projeto do Patriarca vencido para o Brasil: 1) transformação da propriedade agrícola, com a substituição do latifúndio (e sesmarias) pela divisão de terras (reforma agrária); 2) preservação e renovação das florestas; 3) aproveitamento e distribuição das águas; 4) exploração das minas; 5) localização adequada e planejada das novas vilas; 6) transferência da capital do Brasil para uma cidade no interior, com vistas à integração do vasto território; 7) civilização dos índios com o objetivo de incorporá-los à nova sociedade em formação: 8) abolição gradual do tráfico de escravos, seguida de extinção do regime escravista; 9) direito de voto aos analfabetos; 10) miscigenação objetivando suprimir o choque de raças e classes e amalgamá-las num só povo. Esse programa, nas palavras de José Bonifácio, era indispensável “para que venhamos a formar em poucas gerações uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, responsáveis e felizes. É da maior necessidade ir acabando com tanta heterogeneidade física e civil”.

O Patriarca derrotado, que estava em Paris quando da Revolução de 1789, revela nessa formulação a influência que sofrera da Convenção Jacobina: a existência da nação requer um povo; e, no Brasil, esse povo deveria ser fruto do amálgama das raças presentes no território nacional, a fim de, nas palavras dele, “constituírem um todo homogêneo e compacto, que não se esfarele ao pequeno toque de qualquer convulsão política”.

Eis a essência do pensamento de José Bonifácio para construir a nação brasileira — como uma sociedade civil tropical, multirracial e homogênea social e economicamente, vivendo sob um estado democrático, de feição unitária, com um governo centralizado e forte, sob o formato de monarquia constitucional-liberal. As ideias do ilustre santista obviamente não agradavam aos traficantes de escravos (o maior negócio do período colonial e do Império), aos fazendeiros e grandes proprietário de terras e à elite branca — todos viviam da exploração do trabalho não remunerado dos negros cativos e, em menor medida, dos indígenas. E da maneira de pensar dessas poderosas forças partilhavam não apenas a concubina preferida de D. Pedro I, Maria Domitila de Castro Canto e Melo*, mas igualmente os seus áulicos mais próximos, gente da pior espécie: Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, e Plácido Antônio Pereira de Abreu, o Plácido.

Domitila de Castro Canto e Melo - Marquesa de Santos

O título de Marquesa de Santos foi dado à amante do imperador como afronta aos irmãos Andrada e a José Bonifácio, em particular, nascidos na linda cidade praiana. E, para a maioria dos historiadores, Domitila de Castro era agente do que havia de mais reacionário no Primeiro Reinado — o partido português, os escravagistas e até os ingleses — e era muito bem paga para isso. Chalaça* e Plácido eram seus aliados e é a respeito desse trio o comentário do historiador Octávio Tarquínio de Sousa: “(…) a roda palaciana, pelos meios habituais da insinuação, da intriga, da calúnia, da deformação voluntária dos fatos e das intenções, se entregou ao mesquinho trabalho de indispor o monarca com os ministros paulistas. Essa camarilha, composta em larga parte de portugueses, aos quais o brasileirismo nítido dos Andradas causava irritação, privava com D. Pedro de manhã à noite, vivia pronta para satisfazer-lhe todos os caprichos e adivinhar-lhe os desejos menos confessáveis”.

O depoimento da historiadora Maria Graham, que tinha livre acesso à família imperial e seu entorno, não deixa dúvidas: “A verdadeira causa do desprestígio de José Bonifácio estava na amante do imperador e no Plácido”. O próprio Patriarca degradado autocriticou-se por seu equívoco: “Enganei-me; mas julguei que só Pedro era o homem que podia efetuar as reformas políticas que nos convinham, firmar o Governo que requeriam nossos costumes, nossos vícios e funestas divisões e partidos”.

O Grito do Ipiranga

E, em outro momento: “Quando pensava que Pedro marchava em 1823 como tinha marchado em 1822, porque tal era o seu interesse e tal parecia ser a sua vontade, logo que comecei a ser deputado e sobretudo durante a sua moléstia da queda do cavalo, comecei a desconfiar. Os meus esforços iam sendo cada vez mais infrutuosos, ou por causa de novas reações dos outros ministros e áulicos, ou por mexericos e interesses pecuniários das Castro**, o certo é que o não pude mais fixar; e todos os meus talentos e lealdade para nada valeram por causas eventuais e ridículas, que me pareciam não dever abalar a cabeça de Pedro. Porém, não adverti que um rapaz mal-educado e impetuoso não conserva equilíbrio e firmeza e é todo impaciência e furor”***.

Ao dar como verdadeira uma carta falsa que lhe fora apresentada por Domitila, fechar a Assembleia Constituinte, prender José Bonifácio e desterrá-lo para o exílio em França, D. Pedro I fez a sua escolha: preferiu manter os privilégios sustentados pelas forças do atraso social e a corrupção palaciana dos seus áulicos bandalhos, em detrimento do projeto de construir a nação brasileira moldado pelo Patriarca que vilipendiara. E com isso traçou os destinos do país. Até hoje.

Referências:

*Segundo o historiador Cipriano Barata, Maria Domitila e Chalaça (que a apresentou ao imperador, na sua função maior de alcoviteiro e rufião) eram amantes mancomunados para extrair do príncipe e depois imperador o maior lucro. Um caso típico de ménage à trois. O fato é que, com a independência, o prestígio e a fortuna de Chalaça cresceram em proporções geométricas.

**As Castro, a que se refere o Patriarca aviltado, são Maria Domitila e a irmã, Maria Benedita, também amante do imperador, que em testamento reconheceu ter tido com ela um filho, Rodrigo.

***D. Pedro I tinha, em 1823, apenas 25 anos.

Luiz Rodrigues Corvo é advogado e ex-vereador de Santos / SP