SENTIDO REVOLUCIONÁRIO DO TEATRO MUSICAL - 3

SENTIDO REVOLUCIONÁRIO DO TEATRO MUSICAL - 3

Fragmento da partitura da ópera "Carmen" de Georges Bizet

SENTIDO REVOLUCIONÁRIO DO TEATRO MUSICAL - 2

O texto "Sentido Revolucionário do Teatro Musical" foi escrito pelo poeta, escritor e advogado, Gerson Valle. Dividido em 4 partes, o mesmo está sendo publicado semanalmente no jornal Catetear On-line.

Por Gerson Valle

Parte nº2

A ópera atingiu uma importância cultural de tal monta no século XIX que as diversas manifestações nacionais do Romantismo europeu distinguiram-se neste gênero. E nunca é demais lembrar que a afirmação nacional opondo-se a hegemonias estrangeiras era, em si, uma manifestação revolucionária. Na Rússia, o primeiro compositor a se sobressair criando, praticamente, a ópera nacional russa, foi Mikhaïl Glinka com “Uma vida pelo tsar”, libreto de Yegor Rosen, e “Russlen e Ludimila”, baseada no poema épico de Alexandre Puchkin.

Mikhail Glinka

As grandes duas óperas de Modeste Moussorgski, com libretos dele mesmo, “Boris Goudunov” e “Khovantchina” vão direto na História e folclore russos.  Piotr Illitch Tchaikóvski escreveu 11 óperas, sendo suas mais representadas “Eugène Onéguin” e “A dama de espadas”, inspiradas no escritor romântico russo Alexandre Poushkin, com libretos de seu irmão Modest Tchaikovsky. Também seguindo Poushkin são as bem russas “O Tsar Saltan” e “O galo de ouro” de Nikolai Rimsky-Korsakov, que escreveu 11 óperas. Também no caminho das tradições históricas, lendárias e folclóricas é “O Príncipe Igor”, com música e libreto do químico e compositor Igor Borodin. A ópera tcheca também adquiriu uma grande importância nacional com compositores como Anton Dvorak, Bedrich Smetana ou Leo Janacek.

Os procedimentos estéticos wagnerianos influenciaram todo campo operístico. Na França, por exemplo, um Jules Massenet, mesmo com as árias e outros procedimentos tradicionais e dentro de um melodismo francês, segue, como na ópera “Werther”, baseada no romance de Goethe, certas estruturações wagnerianas. O tipo de melodia francesa com tradições provenientes da ópera com balé marcou a carreira de compositores como Charles Gounod, cujo “Fausto”, com libreto de Michel Carré e Jules Barbier foi, no século XIX, das óperas mais levadas, tendo apreciadores entusiásticos. Talvez a acentuação de ideias fantasiosas abrisse necessidades oníricas à acomodada burguesia, seu escape à necessidade revolucionária do espírito.

Charles Gounod

Os procedimentos estéticos wagnerianos influenciaram todo campo operístico. Na França, por exemplo, um Jules Massenet, mesmo com as árias e outros procedimentos tradicionais e dentro de um melodismo francês, segue, como na ópera “Werther”, baseada no romance de Goethe, certas estruturações wagnerianas. O tipo de melodia francesa com tradições provenientes da ópera com balé marcou a carreira de compositores como Charles Gounod, cujo “Fausto”, com libreto de Michel Carré e Jules Barbier foi, no século XIX, das óperas mais levadas, tendo apreciadores entusiásticos. Talvez a acentuação de ideias fantasiosas abrisse necessidades oníricas à acomodada burguesia, seu escape à necessidade revolucionária do espírito.

Claude Débussy

Já para o final do século, Claude Débussy, que chegou a empreender na juventude uma peregrinação wagneriana a Bayreuth, evolui para um posicionamento francês antiwagneriano com o impressionismo em busca de novas harmonias e posturas menos rígidas. Escreve a ópera “Pélleas et Mélisande” entusiasmado com a peça simbolista do belga Maurice Maetterlinck, uma espécie de “Tristão e Isolda” contrária aos arrebatamentos, a ponto de musicá-la sem a formatar sinteticamente num libreto. Passa dez anos escrevendo-a, com um grande rebuscamento para o encontro de harmonias significativas. Curiosamente, o famoso compositor italiano Giacomo Puccini, amante da obra de Wagner e do impressionismo debussiniano, foi de sua cidade italiana à Paris para assistir “Pélleas”, comentando depois que nunca ouvira harmonias mais belas, mas que ópera necessita para atingir o público também de melodias. Aliás, sobre isto, ele chegou a escrever: «Contro tutto e contro tutti, fare opera di melodia» (Contra tudo e contra todos, fazer ópera de melodia). Esta opinião merece uma reflexão.

Puccini, que teve uma sofisticada formação musical já foi acusado de se ter comercializado pelo uso de melodias bem popularizáveis em suas requisitadas óperas. No início do século XX, gozando Puccini do auge da fama, o campo musical parece bipartir-se na chamada “música clássica” seguindo um desenvolvimento histórico de complexidade estrutural e “música popular” por sua estruturação mais simples, a que o sociólogo alemão Theodor Adorno taxou de indústria cultural. Efetivamente, existe uma industrialização conduzida por um “marketing” para atingir maior público e se obter mais lucros no campo das artes. Mas, até que ponto pode-se discriminar feições musicais, rítmicas ou melódicas, que respondem a necessidades naturais do ser humano, e até a razão mesma da música no desenvolvimento social? Afinal de contas, as artes respondem a uma feição própria da sensibilidade, com subjetividade diferente da pura razão das ciências. Nunca foi questionado se a emotividade trazida por uma melodia de Mozart ou Schubert, ou numa sinfonia de Schumann ou Brahms, dentro dos padrões tonais do reconhecimento fácil do público era uma forma manipuladora de fazer dinheiro. E é claro que não era. Ao contrário, parece estar no âmago das manifestações espontâneas, que muitos taxam de fáceis, a função humana e social da arte. E a ópera, em grande parte por trazer fortemente o elemento musical em sua composição multidimensional, não pode prescindir das melodias e ritmos de raízes populares. Tais elementos, parece-me, são o que de mais revolucionário pode suscitar, pois que atingem a sensibilidade mais genericamente existente, justificativa mesmo de tudo que somos.

Georges Bizet

Somente 23 anos depois de “La Traviata” aparece uma segunda ópera realista. Esta foi baseada na novela de Prosper Mérimé, "Carmen", com música de Georges Bizet (1875). Dentro da forma do espetáculo musical parisiense da época, de que eram colaboradores assíduos seus libretistas Henry Meillac e Ludovic Halévy, ambos membros imortais da Academia Francesa, moldou uma cor "exótica" (a Espanha) com grupos marginais como os contrabandistas e cenas com danças e movimento de rua. A cena final da ópera, em frente à "Plaza de Toros" de Sevilha, em que o amante abandonado Don José, que desertara do exército pela Carmen, tenta desesperadamente que ela volte para ele, e ela, com sua personalidade altiva o despreza, fazendo-o matá-la com uma faca, dentro da cultura machista e misógina real de nossa civilização. Tudo expresso autenticamente dentro de uma musicalidade agressiva, sincera, apaixonada de tragédia criadora de catarse.

A brutalidade cênica de "Carmen" acabou invadindo a escola "verista" italiana. Em 1890 a ópera "Cavalleria Rusticana" de Pietro Mascagni, baseada num conto do naturalismo regionalista de Giovanni Verga, se situa na Sicília com seus costumes rudes e de moralidade inflexível. Em 1892, Ruggero Leoncavallo estreia "Os palhaços", com música e libreto seus, que trata da representação num circo de uma cena que reflete a realidade do ciúme do ator (palhaço) por sua mulher atriz (colombina). O teatro passa por representar, na ficção, a realidade, numa metalinguagem teatral. O verismo produziu também uma ópera voltada à Revolução Francesa onde sua realidade crítica e trágica é envolta por belas melodias. “André Chénier”, de Umberto Giordano com libreto de Luigi Illiaca.

O mais representativo do grupo verista é Giacomo Puccini (1858-1924), em cuja "La Bohème", com libreto dos dramaturgos e poetas Illiaca e Giacosa, com base no livro “Scènes de la vie de bohème”, de Henry Murger, descreve a vida de artistas pobres sonhadores da Paris da segunda metade do século XIX, com a dureza das condições sociais, fome, frio do inverno, etc. No final, curiosamente, repete a agonia e morte, de forma minuciosa, de uma jovem tuberculosa, como em "La Traviata", mas com os recursos de um pós-romântico, meio impressionista, sendo entusiasta da obra de Wagner. Em 1901, "Tosca" (baseada na peça de Victorien Sardou, grande sucesso da atriz Sarah Bernard), com a colaboração dos mesmos libretistas Illiaca e Giacosa e sob a supervisão do autor da peça, consegue colocar em música no segundo ato todo o horror de uma perseguição política pela tortura, capitaneado pelo chefe de polícia que chantageia a protagonista para conseguir favores sexuais. Observo aqui que o próprio dramaturgo Victorien Sardou confessou que a ópera superou de muito a sua peça, e podemos observar que antes era levada pelo mundo e parece ter morrido com a ópera.

Gerson Valle é poeta, escritor e advogado

https://www.facebook.com/gerson.pereiravalle