Compositor Estércio Cunha

Compositor Estércio Cunha

Série Compositoras e Compositores do Brasil

jornal "CATETEAR"

Por Luiz Carlos Prestes Filho

Compositor Estércio Cunha: Gosto de ser “goiano do pé rachado, comedor de pequí” e não me vejo em outro lugar.

     Série   Compositoras   e   Compositores   do   Brasil     

Em entrevista exclusiva para o jornal Catetear Estércio Marquez Cunha afirmou: "Cultura de massa é mentira porque cada indivíduo é único e não componente de massa. Tenho fé no futuro porque, na atualidade, um país onde a cultura é um departamento de turismo, temos “a cultura como um produto que deve estar à serviço do dinheiro” e para tal é preciso estimular a orgia inconsciente. Tenho fé no futuro porque o homem é amor, não é submissão." Para o compositor: "A integração das linguagens, a prática de arte, são atitudes fundamentais nos processos de educação-desenvolvimento do percepto-neste mundo ”mergulhado”, eu diria dominado, nos produtos prontos. As ciências e tecnologias precisam existir e desenvolver para o humano, para o ser crítico, para o direito de ser e escolher."

Luiz Carlos Prestes Filho: Música de Concerto, Música Erudita ou Música clássica?

Estércio Cunha: Música! Obra de arte construída a partir dos elementos som, silêncio e ritmo. Toda obra humana, todo trabalho, contém níveis de elaboração que revela a sua intencionalidade.

Luiz Carlos Prestes Filho: Beber na fonte da cultura brasileira foi importante para o surgimento da sua linguagem própria? Sua terra natal, Goiatuba, e a cidade de Goiânia, onde reside, estão na sua obra? Como? Nascer e ficar distante dos grandes centros dominantes da indústria cultural trouxe benefícios para a invenção da sua identidade musical? Desde a “Suíte Brasileira”, onde você traz o côco, a toada e a congada; e “Variações sobre um tema goiano”; o interesse pelos sons nacionais é marcante na sua obra.

Estércio Cunha: Gosto de ser “goiano do pé rachado, comedor de pequí” e não me vejo em outro lugar. Nos anos 60 tive minha formação musical no Rio de Janeiro e voltei para Goiânia professor da UFGO. No final dos 70 fui, com minha mulher e filhos, para Oklahoma-USA para cursar Mestrado/Doutorado em Composição e voltei par Goiânia, como cavalo que sente cheiro de seu pasto. 

"Não tenho dúvida de que estar no cerrado, poder escutar rios e pássaros, marcaram minha identidade (não só musical). Penso que, nos meus 80 anos, vivenciei naturalmente a cultura brasileira. Provavelmente isto está em minha música. Não acredito em nacionalismo como estilo de arte ou de vida.”

Da esquerda para a direita: Amauri Cunha, Dona Estherlina e Estercio Marquez Cunha. Fotografia "Foto Berto" (setembro de 1943) - Acervo: Familia Cunha

Luiz Carlos Prestes Filho: O piano foi um instrumento fundamental na sua formação. Como foram os anos de estudos com as professoras Amélia Brandão e Dalva Maria Pires Machado Bragança? As 54 peças para piano, escritas em 1960, demonstram um momento inaugural que retratam ainda o Estércio de hoje?

Estércio Cunha: O piano foi e é o meu instrumento (só instrumento!). Quando estudei com Amélia Brandão eu era menino e só queria brincar (e muito brinquei). Dalva Bragança foi minha professora no Conservatório Goiano de Música. Ela me incentivou a ir embora para estudar. No Rio fui aluno da grande professora de piano Elzira Amábile e logo fui para o curso de composição com a mestra Virgínia Fiúza. Claro, minhas primeira peças para piano são de aprendizado, mas nunca paro de ganhar experiência e consciência. Penso que cada peça é um momento.

Professora Amélia Brandão

Luiz Carlos Prestes Filho: Qual sua opinião sobre a crítica da música contemporânea no Brasil? Quem são aqueles críticos que realizam um trabalho que merece reconhecimento no campo da música contemporânea no Brasil e no exterior?

Estércio Cunha: Confesso que leio e me ocupo muito pouco com crítica. Sei que temos bons críticos e analistas de arte, mas, falha minha, não estão no meu cotidiano. Arte é do fazer e se dirige livremente `as percepções. Mas, valorações contemporâneas tais como “é um grande gênio da música, vendeu 10 milhões de cópias”, como o turismo espacial, são ostentações irreais em um mundo contemporâneo de fome de comida e de inconsciência crítica.

Solenidade realizada no Palácio das Esmeraldas, sede do Governo do Estado de Goiás. Entrega do Troféu Jaburu (2016), ao compositor Estécio Cunha,  por sua contribuição na vlorização dos valores da cultura goiana. O troféu foi entregue pelo ex-governador Marconi Perillo, juntamente com a ex-primeira dama Valéria Perillo e a presidente do Conselho Estadual de Cultura, Nancy Ribeiro de Araújo. 

Luiz Carlos Prestes Filho: Cite nomes de compositores que foram fundamentais para a sua formação. Também, aqueles que você acompanha no Brasil e no mundo. Também, algumas obras que tiveram importância estruturante na sua formação.

Estércio Cunha:Menino ainda eu me maravilhava com as duplas caipiras, as modas de viola, as catiras, as serenatas. Um dia, porque na sexta feira da paixão, a radio só tocava música clássica, eu tive uma bordoada musical e fui na rádio saber o que escutara: Stravinsky-Sagração./ A moda de viola assim como as estruturas tímbricas e atonais fazem parte do meu mundo./ Conviví com alguns compositores que me foram fundamentais: Camargo Guarnieri, Conrado Silva, Gilberto Mendes, Ray Luke.

Luiz Carlos Prestes Filho: A Música Contemporânea abraça o seu ambiente de trabalho. Você acompanha quais movimentos de Música Contemporânea? Quais poderia destacar? Nas suas obras “Quase Silêncio” e “Quase um Silêncio” você traz o tema que muitas vezes está presente na sua fala: O Silêncio. Porque é importante saber ouvir o silêncio?

Estércio Cunha: Penso que “música contemporânea” é a música de hoje. No ofício de compor percebo e analiso as técnicas e estética que encontro. Mas, não me coloco em nenhum movimento ou grupo. Se não estou estudando e compondo sou apenas fruidor. Sobre o silêncio: para mim, além de ser a base sob a qual a música e a fala se apoiam, é elemento de construção altamente expressivo. Penso que, hoje, a ausência, o vasio, o silêncio são profundamente expressivos e importantes. Na civilização ruidosa e orgíaca, da coisa pronta em que vivemos, necessário se faz estratégias de percepção para que os indivíduos sejam minimamente críticos e possam exercer sua capacidade de escolha. Sem dúvida, a percepção do silêncio é o início.

Luiz Carlos Prestes Filho: O compositor Hélio Sena escreveu que muitas das obras de Heitor Villa-Lobos que mais são executadas, como as “Bachianas”, por exemplo, tem na sua matriz a seresta e a serenata. Neste contexto é interessante a sua afirmação de que: “Somos todos seresteiros em Goiás, muito da nossa música vem do cantar e fazer seresta”. Uma curiosidade, você conhece a tradição da Capital Brasileira da Seresta – Conservatória (distrito de Valença/RJ)? Cite, por favor, nomes de compositores seresteiros de Goiás e qual o impacto das obras seresteiras nos compositores de seu Estado. Na obra “A Serenata que não fiz” você canta: “Mas, qual do passado / Poeta seresteiro / Direi eternamente / Te amarei minha Maria”. É pura seresta!

Estércio Cunha: Pois é! “Somos todos seresteiros”... Na seresta, na serenata, no choro, pressupõe silêncio, lua, intimidade... O jovem Vila Lobos foi um chorão num Rio bem enluado. Ficou-lhe a marca. Os primeiros Choros, real e belissimamente, o são. Depois ficou título, o que não desmerece a obra. O Choros 10 é uma obra prima, um panorama de brasilidade, mas já não é choro./ Aqui em Goiás ainda temos muitas serestas e muitos seresteiros. Em Goiás Velho, por exemplo, à noite seresteiros, isolados ou em conjunto, cantam sob as janelas e nas margens do Rio Vermelho./ “Serenata Que Não Fiz”, é uma “desculpa” à minha mulher em nossos 25 anos de casados. Já passamos das bodas de ouro... continuo um mambembe seresteiro apaixonado.

Luiz Carlos Prestes Filho: Você é autor da obra “Natal 84”, para duas flautas, violão, coro e atores. Também, da obra “Guarda da Noite”, baseado no poema de Yêda Schmaltz. A palavra inspira a sua música ou a música vem antes da palavra? Você disse certa vez que: “A música pode surgir de uma única palavra”. Você é um dos fundadores da escola de música “MVSIKA”, dedicada ao ensino de artes integradas. Como foi esta experiência? A integração das linguagens reflete o mundo atual que está mergulhado numa nova revolução científica e tecnológica?

Compositor Estécio Cunha

Estércio Cunha: “A palavra inspira a sua música ou a música vem antes da palavra?”... Quem nasceu primeiro o ovo ou a galinha, a árvore ou a semente? A fala e a música são construídas do mesmo material: som, ritmo e silêncio. Estão muito próximas. Uma referencia, a outra instiga, mas elas se contêm. O intérprete-músico e o ator são um só no palco. E, o palco se move para o público. As artes de comunicação podem se integrar na obra que se oferece às percepções. (Porisso não trabalho com música eletroacústica. O intérprete, a relação, é humanamente necessário). A integração das linguagens, a prática de arte, são atitudes fundamentais nos processos de educação-desenvolvimento do percepto-neste mundo ”mergulhado”, eu diria dominado, nos produtos prontos. As ciências e tecnologias precisam existir e desenvolver para o humano, para o ser crítico, para o direito de ser e escolher.

Luiz Carlos Prestes Filho: Qual tem sido a contribuição dos compositores brasileiros vivos de música contemporânea para com o desenvolvimento da técnica da escrita musical? Podemos identificar uma proposta brasileira? A nossa música contemporânea já conquistou a cena internacional? Quem são aqueles que realizam obras onde existe a “imprevisibilidade” que você entende como elemento fundamental para a música acontecer?

Estércio Cunha: A escrita musical se desenvolve com a necessidade de grafar o que a memória não passa por tradição. A grafia das alturas sonoras, das proporcionalidades rítmicas, se desenvolveram e se tornaram linguagem ou extrato comum. Novos sons, novas atitudes musicais aparecem e, não tendo uma grafia prévia, cada um propõe seus sinais gráficos. Por isso muitas das músicas contemporâneas necessitam de referências. Tenho lido em publicações, propostas de grafia que ficam como leitura de um compositor e não de proposta definitiva./ Penso que “conquistar a cena internacional” é algo irrelevante. Fazer música é importante.

"A imprevisibilidade é condição para se instigar as percepções. Quando a música, ou qualquer arte, se baseia em padrões repetitivos, previsíveis, servem para anestesiar, atrofiar as percepções. Servem bem como suporte para se inculcar ideologias. Por isso o elemento imprevisibilidade ser necessário nas obras que se propõem estimulantes.”

Luiz Carlos Prestes Filho: A Academia Brasileira de Música (ABM) desempenha papel importante na difusão da música brasileira. Você entende que o compositor deve participar de associações e sindicatos para encaminhar reivindicações e participar ativamente das lutas populares? Lutar de maneira organizada contra o que você chama de “civilização da orgia”; contra aquelas políticas públicas que tratam a “cultura como um produto que deve estar à serviço do dinheiro”.

Estércio Cunha: Respeito profundamente as associações e sindicatos e as lutas de classe. As confrarias de artesãos, as ágoras de troca foram elementos de afirmação do homem trabalhador. Mas, no mundo industrial mecanicista, a máquina substitui o homem na força do trabalho e o homem não é educado para a nova realidade. Ele, o homem, é treinado como mão de obra para a máquina que produz para uma elite. Penso que “participar ativamente das lutas populares” é oferecer educação crítica, criativa, aos cidadãos. E, aí está a pratica de arte, não como “pão e circo”, mas como elemento conscientizador dos indivíduos componentes da sociedade. Cultura de massa é mentira porque cada indivíduo é único e não componente de massa. Tenho fé no futuro porque, na atualidade, um país onde a cultura é um departamento de turismo, temos “a cultura como um produto que deve estar à serviço do dinheiro” e para tal é preciso estimular a orgia inconsciente. Tenho fé no futuro porque o homem é amor, não é submissão.

Luiz Carlos Prestes Filho: Quais são as orquestras brasileiras que você admira como compositor? Quais são os maestros que mais tem intimidade com sua obra?

Estércio Cunha: A OSESP é uma grande orquestra com repertório sempre renovado. Mas, coisa boa dos meios contemporâneos, podemos escolher orquestras e outros conjuntos do mundo todo. Em Goiânia temos duas orquestras de boa qualidade e nelas tenho o privilégio de escutar músicas minhas. Os maestros Eliseu Ferreira e Marshal Gaioso tratam com muito carinho o que faço para orquestra. O Coro sinfônico de Goiânia, com regência de Katarine Araújo tem dado atenção à minha música.

Luiz Carlos Prestes Filho: Como professor, você confirma que no Brasil está surgindo uma nova geração de compositores? Quem seriam eles? Entre estes, existem seus discípulos?

Estércio Cunha: Sim, temos sempre novas gerações de compositores, com ideias e pensamentos diferenciados. Com alguns deles tive a alegria de ser partícipe de suas formações. “Discípulo” é muito forte. Colega é melhor. Apenas alguns que lembro: Rodrigo Lima, Paulo Guicheney, Manassés Aragão, Juliano Lucas. Música Íntima é um grupo de jovens compositores e intérpretes em Goiânia, que fazem música de hoje com muita qualidade. Claro que esquecí muitos queridos.

O compositor Estércio Marquez Cunha e Ana Maria Pacheco (década de 1950). O compositor cofessa que na adolescência: "Gostava de Dançar". (Família Cunha)

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Autor da entrevista: LUIZ CARLOS PRESTES FILHO: Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); é autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2016).