A FEIJOADA DA RUA GORKI - Sabor Clandestino de Maria Prestes (texto final)

A FEIJOADA DA RUA GORKI - Sabor Clandestino de Maria Prestes (texto final)

Maria Prestes e Luiz Carlos Prestes viitando uma cooperativa agrícula na ex-União Soviética, hoje Rússia

A Feijoada da rua Gorki

(texto filnal)

Por Maria Prestes

O João e o Pedro começaram a trazer seus colegas de curso em nossa casa, alguns deles eram cubanos. Ficaram admirados com o feijão mulato que servi. Eu tínha encontrado esse tipo de feijão no Mercado Central. Nos supermercados do centro de Moscou onde meu companheiro ia regularmente fazer compras, nunca encontramos. Qual foi minha alegria quando o Manolo, um dos amigos de meus filhos, que depois virou grande amigo meu, disse que sabia onde tinha feijão preto para comprar. Era no interior da Ucrânia! Completou que o feijão preto servia, exclusivamente, como alimentos dos porcos nas cooperativas agrícolas.

Regularmente Prestes ia fazer compras nos supermercados perto de nossa casa, na rua Gorki, hoje Teverskáia. Foto de meu filho Luiz Carlos

Imediatamente começamos a importar o produto. Amigos ou familiares que viajavam para Kiev tinham como missão trazer alguns quilos. Depois que conheci estudantes brasileiros que estudavam naquela República Soviética, tudo ficou mais fácil. Era só ligar que eles enviavam feijão preto pelo correio ou arranjavam um portador. Assim surgiu a possibilidade de fazer uma feijoada. Mas e os outros produtos? Rabo, costela, lombo, toucinho de porco naquela ocasião eu já sabia onde tinha. Assim como couve e laranjas. Faltava a carne seca, o paio e a farofa. Tive que buscar substitutos.

Consegui, através de algumas experiências com a farinha de semolina, chamada de "mánaia", que é muito popular na Rússia até hoje, inventar a minha farofa! Torrei essa farinha na frigideira grande e depois derreti manteiga nela acrescentando um pouco de cebola, ovos e bacon. Foi uma festa a primeira feijoada. Somente após todos os convidados aprovarem foi que contei que usei a mánaia no lugar de farinha de mandioca. O nosso amigo, Gregório Bezerra, grande herói das lutas populares do Brasil, adotou a minha maneira de fazer farofa!

Teatro Bolshoi de Moscou, Rússia

A cidade de Moscou tem centenas de teatros e cinemas. Muitos deles eu frequentei com assiduidade como o Bolshói, do qual assisti todo o repertório de balé e ópera. Quantas vezes puder aplaudir a inesquecível bailarina Maya Plisetskaya!

A bailarina soviética Maya Plisetskaya

O balé "Spartacus", de Aram Khachaturian assisti inumeras vezes com meu marido e filhos.Os cafés instalados nesses estabelecimentos sempre eram disputados, porque a maioria do público vinha para o espetáculo direto do trabalho. Também são centenas de museus abarrotados de gente como a Galeria Tretiakov, onde fui sozinha e, outras vezes, levando amigos que chegavam do Brasil para conhecer a Pátria do Socialismo.

Em visita a cidade de São Paulo, no início da década de 1960, o compositor soviético Aram Khachaturian, no centro, do seu lado direito Luiz Carlos Prestes. Também estão na foto o filósifo Jacó Bazarian, acompanhado de sua família, à esquerda. Quem sabe, após a veiculação desta imagem, conseguimos identificar todos?

Nestas reportagens contei algumas coisas que vivi nos anos de exílio na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). São textos nos quais tentei reproduzir o que conto com frequência para os meus netos e bisnetos. Os mais jovens acreditam em tudo, os mais velhos duvidam, acham que a vovó aqui exagera. Penso isso ser normal, porque hoje a URSS não existe mais, o Campo Socialista Europeu desapareceu com a queda do Muro de Berlim.

Na América Latina, apesar dos regimes militares terem ruído, verificamos que a democracia ainda é muito frágil, que precisamos de grandes ajustes sociais para atender os mais pobres e desvalidos. Mas acredito ser útil registrar, não deixar cair no esquecimento alguns detalhes daqueles anos, pois a experiência do socialismo real no século XX deixou muitas marcas positivas e acredito ser importante ressaltá-las.

Luiz Carlos Prestes e o poeta soviético Rassul Gamzatov, autor de "Juravlí" ("Cegonhas")

Depois de uma visita à Galeria Tretiakov, muitas vezes voltei para casa passando pelos Jardins Alekssadrovsky ao lado do Kremlin, onde fica o túmulo do Soldado Desconhecido e homenagens a todas as cidades que foram invadidas pelas tropas de Hitler, durante a Segunda Guerra Mundial, que os russos denominaram de Grande Guerra Pátriótica. Do cancioneiro desta guerra, que levou a vida de 20 mlhões  de cidadãos soviéticos, eu gosto de cantar "Juravlí", do poeta Rassul Gamzatov. A letra diz o seguinte. Parece-me que os soldados que morreram na guerra, hoje são passáros. Por isso, em silêncio lanço meu olhar para o céu. Percebo que existe uma lacuna, um vazio no meio da revoada. Espaço que precisa ser preenchido... Talvez este seja um lugar reservado para mim!

Durante a primavera, sempre gostei de admirar o cenário de tulipas vermelhas da capital russa, também, os vasos enormes com begônias e cravos brancos. A vida no exílio exigia da minha pessoa discrição, silêncio e paciência. A prioridade era a luta no Brasil pela Anistia Politica para os presos e exilados. O que aconteceu em outubro de 1979.

Agora, 40 anos depois que voltamos para o Brasil, me animei a escrever sobre o meu exílio. Hoje em dia, reúno a família regularmente para saborear os pratos que aprendi a fazer na Rússia. Trago os sabores da Cozinha da Tverskáya, como o borsh, para a minha atual cozinha que fica na Gávea, no Rio de Janeiro.

O querido amigo, Gregório Bezerra, que aprendeu comigo a preparar a "farofa de mánaia", servido feijoada na sua casa em Moscou, numa foto de meu filho Luiz Carlos.

A FEIJOADA DA RUA GORKI

Ingredientes: 1 kg de feijão preto; 250 gramas de peito bovino; 250 gramas carne seca; 1 pé de porco; 250 gramas de costela de porco, 1 rabo de porco; 250 gramas de orelha de porco; 200 gramas de bacon; 250 gramas de linguiça; 1 cebola; 3 dentes de alho; 3 folhas de louro; 1 colher de sopa de vinagre; 1 colher de sopa de manteiga; 1 kg de semolina.

Modo de Preparo do Feijão: De um dia para o outro, tire o sal da carne seca, do rabo, costela, orelha e do pé de porco, deixando tudo de molho. No dia seguinte, coloque o feijão numa panela grande com muita água, com as folhas de louro e coloque para cozinhar. Após 40 minutos acrescente todas as carnes e cozinhe até que o feijão fique macio. Numa panela à parte, frite a linguiça, cortada em rodelas, 100 gramas bacon picado com cebola, alho, pimenta do reino, vinagre e deixe fritar alguns minutos. Em seguida despeje o conteúdo da frigideira na panela do feijão e deixe cozinhar mais 30 minutos.

Modo de Preparo da Farofa: O produto fundamental para preparar uma farofa no Brasil é a farinha de mandioca. Na Rússia descobri que a semolina, lá chamada de "mánaia", é um bom substituto. O preparo é simples. Numa frigideira coloque a manteiga, bacon picado e deixe fritar. Em seguida, junte com a cebola e três ovos, sempre mexendo. Aos poucos acrescente a farinha de semolina até a mesma ficar torrada.

Observação: A feijoada da Dona Maria, na rua Gorki, ficou famosa. Todos brasileiros exilados, visitantes ou estudantes, desejavam experimentar. Fiz uma especial para os amigos João Massena Mello e David Capistrano da Costa, que antes de voltar para o Brasil, estiveram conosco em Moscou.

Maria Prestes, militante comunista, é viúva de Luiz Carlos Prestes

Livro "Meu Companheiro - 40 anos ao lado de Luiz Carlos Prestes" de autoria de Maria Prestes