O Sabor de Vila Mariana - Maria Prestes 3

O Sabor de Vila Mariana - Maria Prestes 3

Família Prestes,1961, São Paulo, Brasil. Da esquerda para a direita: Rosa, Maria, com Zoia no colo, Prestes com Mariana e Luiz Carlos, Anita Leocádia e Ermelinda. Ao fundo, de pé, Antônio João e Paulo Roberto.

Luiz Carlos Prestes e Maria Prestes

Serie: "O Sabor Clandestino de Maria Prestes".

O Sabor da Vila Mariana

Por Maria Prestes

Foi a grande amiga Amy Câmara que ofereceu o veículo que nos levou até o aeroporto Viracopos de Campinas, em junho de 1970. Estávamos partindo para Roma. Era a Kombi que ela usava para transportar doces que vendia regularmente numa feira de rua. Ao volante, o José Cardoso, que todos chamavam carinhosamente de Tiguez. Fomos acompanhadas pelos queridos irmãos Luiz Carlos e Carlos Roberto dos Santos; também pelo Onaldo ou Naldo, como chamávamos ele. Também, pelas inseparáveis Amy e as suas filhas, Sônia e Tânia.

O amigo Aldo Lins e Silva

Foi uma luta para conseguir a emissão dos passaportes. E foram os amigos Dante Ancona Lopes, Miguel Costa Junior e o Aldo Lins e Silva que resolveram a burocracia junto aos órgãos competentes – tanto na certidão de nascimento do Paulo como a do Yuri não constava o nome do Velho. Os burocratas exigiam o comparecimento ou a autorização escrita do pai. Como podia ser possível, se o mesmo era procurado pela polícia política desde 31 de março de 1964?

Deixávamos para trás a casa na Rua Dr. Nicolau de Sousa Queiroz, 153, no bairro de Vila Mariana, onde fomos morar no ano de 1961. O local tinha sido invadido pela polícia após o Golpe Civil-Militar de 1964. Tivemos a sorte de não presenciar o saque que o exército promoveu – conseguimos nos esconder na casa de amigos. Voltamos para essa casa vazia três meses depois, quando os advogados deram garantias de vida para mim e meus filhos. Levaram tudo: as panelas, os livros, as roupas, os armários, os talheres, o liquidificador, batedeira de bolo, a panela de pressão, a máquina de lavar roupa, o ferro elétrico e até o fogão. Tivemos que começar do zero.

Página da revista REALIDADE de dezembro de 1968. Na foto com meus filhos: Yuri Alexandre e Mariana, por mim abraçados; Zoia de branco; à direita de o Luiz Carlos e Ermelinda; na última fileira Antônio João e Rosa. Não estão na foto o Pedro e o Paulo Roberto.

O Vantuíl Gomes dos Santos, militante comunista, e seus filhos passaram a comparecer à nossa casa com mais frequência. Era necessário, não só porque eles ajudavam em tudo, inclusive no contato com o meu companheiro, Luiz Carlos Prestes, que vivia na clandestinidade. O Velho era o primeiro nome da lista daqueles que tiveram seus direitos civis e políticos suspensos.

O amigo Vantuil Gomes dos Santos

Posso até afirmar que a família cresceu. Os irmãos Vera, Luiz Carlos, Carlos Roberto e Maria Luisa, filhos do Vantuil e esposa, Dona Luísa Rute, juntos com o Tiguez e o Roberto Serra, sempre estavam vigilantes frente a qualquer coisa suspeita frente à nossa porta. Morávamos numa casa geminada grande. No térreo ficava uma ampla cozinha; a dispensa; a sala de jantar; a sala de visitas; e uma varanda toda envidraçada. Eu adorava o jardim da parte da frente, onde tinha uma camélia e canteiros com rosas brancas e vermelhas. Junto à janela da varanda tínhamos um conjunto de palmeiras que davam ótima aparência.

Atrás, depois da garagem, onde era guardado o Chevrolet do velho, tínhamos o tanque e outro jardim onde eu mantinha o varal para secar roupas. Era bastante grande o quintal com um pé de manacá, um lindo bougainville vermelho e várias bananeiras. As crianças tinham esse espaço para brincar e tomar sol. Mas gostavam mesmo é de pular para o terreno baldio vizinho para pegar goiabas, laranjas e tangerinas. Durante diferentes períodos eu mantive um galinheiro, o que me permitia garantir aquele molho pardo fresquinho que o velho gostava! Em diferentes oportunidades mostrei para o Carlinhos, Melinda e Rosinha como matar uma galinha. Inseguros, às vezes eles soltavam a ave que, sem cabeça, saía correndo espalhando sangue por todo lado, levantando uma gritaria danada.

A escada interna, próxima à sala de jantar, nos levava para a parte alta da casa onde estavam: o quarto dos meninos; o das meninas; meus aposentos; e o escritório do meu marido. Junto à mesa de trabalho do Velho estava a cúpula das palmeiras do jardim da frente. Os meninos adoravam pular da janela, agarrar no tronco, balançar e escorregar. Gritavam: “Fazemos como os bombeiros!”. Como não lembrar das frases escritas na base dessas palmeiras pelos soldados e oficiais do exército que invadiram nossa casa após o golpe? Eram palavrões e insultos que nos feriram moralmente e que quase mataram a própria planta.

Nessa casa criei o Pretinho, um cocker; o Bob, um pastor alemão; e o Duque, um vira-lata que era o mais esperto de todos! Esse último levou uma facada de um vizinho anticomunista, e escolheu falecer debaixo da minha cama. Ninguém viu quando ele subiu as escadas sangrando e se escondeu. Fidelidade.

De 1961 até 1964, a vida foi muito agitada e eu contava com apoio permanente de amigos do Partido Comunista. O Velho, que vivia e trabalhava na legalidade, tinha muita atividade política, tanto externa como dentro de casa. Era um movimento muito grande de amigos, líderes sindicais e de associações diversas, artistas e membros de movimentos sociais, professores e estudantes universitários. Tínhamos que sempre estar à disposição para atender a todos. O centro da casa era o movimento entre a sala de visitas e o escritório.

Depois do golpe de 1964, tudo mudou. O centro da casa passou a ser a cozinha onde eu podia reunir todos. Lembro da pia de mármore com sua enorme bancada. Foi nesse período que aprendi um pouco mais da gastronomia paulista, em especial da cozinha italiana.

Era um verdadeiro ritual o preparo do nhoque. Cozinhar para 20 pessoas, oferecendo a mesma qualidade, sempre é um desafio. Tinha que ter uma boa quantidade de batatas, manteiga, ovos, fermento e leite. Todos literalmente com a mão na massa! O meu filho Pedro, com a autoridade que sempre teve, ajudava a comandar. Ninguém ficava de fora, inclusive nenhum dos amigos aqui citados. A mesma coisa acontecia durante o preparo das lasanhas, macarronadas e do arroz “Juntos Venceremos”. Destaque especial para as pizzas. Normalmente preparávamos a massa em casa, mas muitas vezes recorríamos à padaria que ficava no ponto mais alto da nossa ladeira.

A família Prestes em Moscou, Praça Vermelha, Rússia (ex-União Soviética), 1971. Em pé, ao fundo: Antônio João e o nosso querido amigo, Gregório Bezerra. Na segunda fileira: Ermelinda, Luiz Carlos Prestes, Maria e Rosa. Na primeira fileira, Mariana, Yuri, Luiz Carlos e Zoia.

Todo esse mundo ficou para trás naquele mês de junho de 1970, quando partimos, num voo da Alitalia, para Roma, cidade que em muito acrescentou nos meus conhecimentos sobre pizzas. Mesmo assim, em todos os restaurantes que frequentamos na Itália não encontrei uma pizza que tivesse aquele sabor característico paulista!

Somente muitos anos depois soubemos que quando o nosso avião levantou voo, com as aeromoças rindo da agitação das minhas crianças e adolescentes, que os amigos de despedida quase morreram. O Tiguez dormiu ao volante e meteu a Kombi num arvoredo.

RECEITAS:

GALINHA AO MOLHO PARDO

A preferida do Velho.

Ingredientes: 1 galinha; 2 dentes alho, 1 cebola; meio pimentão; 1 colher vinagre; 1 colher de massa de tomate; sal e louro a gosto.

Modo de Preparo: Primeiro é necessário saber matar a galinha e guardar o sangue da mesma numa tigela com vinagre, batendo no sangue constantemente para não coalhar. Em seguida, limpar a galinha, retirar as penas e os miúdos, e cortar ela em pedaços grandes. Repousar numa panela e temperar. Após 40 minutos, leve a galinha ao fogo e deixe cozinhar até que a carne fique macia. Antes de servir à mesa, acrescente o sangue guardado e cozinhe por 15 minutos.

Observação: A galinha ao molho pardo é um prato que sempre me acompanhou. Lembro de minha avó matando uma galinha e cuidando do seu preparo. 

NHOQUE COMUNA

Um dos pratos mais tradicionais na minha casa em São Paulo.

Ingredientes: 350gr de farinha de trigo; 1 kg de batata inglesa; 3 ovos; sal a gosto.

Modo de Preparo: Descascar, cozinhar e amassar a batata. Após o esfriamento, misturar com a farinha de trigo e ovos. Enrolar a massa em longas tiras. Em seguida, cortar as tiras em pequenos pedaços que, aos poucos, devem ser levados para panela com água fervente. Quando os nhoques subirem, devem ser retirados da panela e colocados numa bandeja. Sugiro o molho de tomate fresco com cebola. Servir com queijo parmesão ralado.

Observação: Da feitura do nhoque todos participavam ativamente.

ARROZ “JUNTOS VENCEREMOS”

Um dos pratos preferidos dos meus filhos.

Ingredientes: ½ kg de arroz; sal a gosto.

Modo de Preparo: Numa panela com muita água acrescente o arroz e deixe cozinhar em fogo baixo. Quando a água secar o prato está pronto.

Observação: Meu filho Pedro usava o que restava deste prato para preparar arroz de forno com todos os ingredientes disponíveis na cozinha.

MACARRONADA

Um dos pratos que os meninos sabiam fazer como ninguém.

Ingredientes: ½ kg de macarrão talharim ou espaguete; 4 tomates; massa de tomate; 1 pimentão; 1 cebola; 3 dentes de alho; 2 colheres de azeite de oliva; 1 colher de manteiga; sal a gosto.

Modo de Preparo: Cozinhar na água os tomates com o pimentão, a cebola, o alho e sal. Depois do esfriamento, bater o conteúdo no liquidificador, quando deve ser acrescentado o azeite e a manteiga. O macarrão deve ser colocado numa panela com água fervente que, após estar cozido, deve ser retirado e colocado numa travessa. O molho deve cobrir o macarrão.

Observação: Esta receita muito usada em São Paulo fez sucesso em Moscou.

Maria Prestes, militante comunista, é viúva de Luiz Carlos Prestes

Capa do Livro "Meu Companheiro - 40 anos ao lado de Luiz Carlos Prestes" de Maria Prestes

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