SENTIDO REVOLUCIONÁRIO DO TEATRO MUSICAL - 2

SENTIDO REVOLUCIONÁRIO DO TEATRO MUSICAL - 2

Formula da Primavera do artista revolucionário Pavel Filonov

SENTIDO REVOLUCIONÁRIO DO TEATRO MUSICAL - 2

O texto "Sentido Revolucionário do Teatro Musical" foi escrito pelo poeta, escritor e advogado, Gerson Valle. Dividido em 4 partes, o mesmo está sendo publicado semanalmente no jornal Catetear On-line.

Por Gerson Valle

Parte nº2

Na primeira metade do século XIX a ópera volta-se mais às encenações históricas, com muita exacerbação romântica e a atração do bel-canto. O italiano Gioacchino Rossini foi tido à conta de maior expressão artística de seu tempo pelo escritor francês Stendhal, que lhe escreveu uma grande biografia. Destaco suas óperas cômicas, que, de certa forma, levam adiante as inovações mozartianas, sobretudo “O barbeiro de Sevilha”, inconteste obra-prima também baseada em Beaumarchais como “As bodas de Fígaro” já comentada. Ainda merecem encenações internacionais os italianos Gaetano Donizetti e Vicenzo Bellini. A ópera alemã consolida-se com Carl Maria von Weber.

Gioacchino Rossini

O gênero na França desta época adquire uma dimensão tanto artística como social, sendo aí lhe dado o conceito de "grande ópera", espetáculos feéricos na montagem, sempre com balés, de Giacomo Meyerbeer, Auber ou Halévy. No auge do Romantismo, o “Fausto”, de Charles Gounod, baseada em Goethe, torna-se das óperas mais levadas e apreciadas. Talvez a acentuação de ideias fantasiosas abrisse necessidades oníricas à acomodada burguesia, seu escape à necessidade revolucionária do espírito. A "Ópera Cômica", em Paris, também produz espetáculos que em vez de recitativos, os trechos não cantados são de teatro falado, como o “Singspiel” alemão, procurando temas exóticos, chegando ao alegre bufo ridicularizável que faz surgir o gênero opereta (como as de Offembach ao tempo de Napoleão III, ou na Áustria do século XIX as do famoso valsista Johann Strauss Filho, ou, no século XX as de um Franz Léhar), gênero que vai originar burletas, zarzuelas na Espanha, musicais na Inglaterra e Estados Unidos, e mesmo o "filme musical".

Giuseppe Verdi

O Realismo literário voltado contra o domínio do Romantismo da primeira metade do século XIX, obtém, em 1852, um grande sucesso teatral com “A dama das camélias”, de Alexandre Dumas Filho, colocando uma cortesã como heroína. Giuseppe Verdi (1813-1901), que vivia com uma cantora sem serem casados, sendo ela socialmente desprezada pela irregularidade da situação para a época, em 1853 lança a ópera baseada na peça de Dumas em resposta à hipocrisia social, "La Traviata", com libreto, como em tantas de suas outras óperas, de Francesco Maria Piave. Além da ação passar-se na época presente, contrariamente à tradição do argumento histórico, a ópera termina com o realismo chocante da agonia e morte da "transviada" empobrecida, desprezada pela sociedade, tuberculosa. Pode-se dizer que esta foi a primeira ópera de intenção realista. A música, inclusive, reflete as valsas de salão da época junto à sentimentalidade italiana direta a condoer-se do desprezo social que cercava a personagem.

Verdi teve uma longa carreira. Morreu com 87 anos, acompanhando a evolução praticamente da maior parte do século XIX, evoluindo ele próprio, em cada nova ópera, com os recursos técnico-musicais, como na orquestração, e na sutileza dos fraseados melódicos na equivalência dos versos do libreto. Seu melodismo tornou-o popular, e seguia a tradição do Romantismo da ópera italiana. O sentido trágico de suas óperas leva a paroxismos musicais arrebatados.  É de se ressaltar que Verdi chegou a simbolizar o movimento revolucionário, na Itália, que lutava pela unificação e libertação de algumas de suas regiões ocupadas. Muitos dos coros de suas primeiras óperas exaltavam a ideia de independência política, recebendo inúmeras censuras e sendo usados nas manifestações de rua. Coerentemente, suas óperas continham sentimentos de revolta contra injustiças, acentuados na expressividade do Romantismo musical. A catarse dos gregos é evidente, por meio do espírito trágico que paira em suas representações, como se sempre em revolta. No fim de carreira, sua parceria com o libretista Arrigo Boito, um intelectual poeta também compositor, abre caminho para a ópera do século XX, num tipo de revolução mais estética, com “Otello” e “Falstaff”, com base em Shakespeare.

Reconhecidamente revolucionário, no entanto, tanto para seu tempo como na História da Música, foi seu contemporâneo alemão Richard Wagner. Ambos nasceram no mesmo ano de 1813. Wagner chegou a escrever que “A minha verdadeira missão é semear a revolução por onde quer que eu passe”. Musicalmente, “Tristão e Isolda”, devido ao excesso de cromatismo que parece ter levado ao extremo as possibilidades do sistema tonal, é vista como uma revolução que abriu caminho para o atonalismo e dodecafonismo no século XX. Mas, o angustiante sentido da suspensão da resolução tonal não aparece por um capricho técnico-musical, e sim com a intenção de expressar a ideia do desejo continuado, nunca resolvido, como significado do amor. Friedrich Nietzsche chamou “Tristão e Isolda” de "verdadeiro opus metaphysicum de toda a arte", e mesmo depois de romper com Wagner: "Ainda estou procurando nas artes, e em vão, uma obra com um fascínio tão perigoso, uma percepção do infinito tão terrível e doce como Tristão". E mais: “Eu simplesmente não consigo me manter criticamente distante desta música; cada nervo em mim com ela se aviva”.

Richard Wagner

Em sua adolescência, Wagner lia Shakespeare, Goethe, Schiller, estudou piano, apreciava Mozart, Beethoven, e escrevia poesia e peças de teatro. Só com mais de 16 anos resolveu tornar-se compositor, estudando meio autodidaticamente, logo escrevendo, audaciosamente, uma sinfonia, uma sonata para piano, aberturas orquestrais, e torna-se, anda jovem, regente da orquestra do teatro de Riga, sendo marcada sua primeira regência com a ópera “Don Giovanni” de Mozart.

Como Verdi, passou por três fases, mas não apenas numa evolução técnica, e sempre fazendo pesquisas para ele mesmo escrever seus libretos, sendo poeta, dramaturgo, compositor, maestro, ensaísta, sociólogo, filósofo, tudo como autodidata. De início seguiu o Romantismo alemão de Carl Maria von Weber em três óperas com estruturas similares aos grandes nomes italianos da época. Numa segunda fase (“O navio fantasma”, “Tanhäuser” e “Lohengrin”), a orquestra se vai destacando, e alguns temas melódicos marcam ideias e personagens, com seu envolvimento literário trazendo assuntos lendários e míticos. Isto o caracterizará sempre, fazendo com que o festejado antropólogo francês Claude Lévy-Strauss atribua-lhe a paternidade da análise estruturalista dos mitos. Antes de iniciar a terceira fase, a do total amadurecimento, em quatro anos sem escrever música, publica alguns ensaios reflexivos fundamentais para a sua grande revolução artística, como “Ópera e drama”, “A obra de arte do futuro”, “Arte e revolução”.

Desta, destaco as frases: “a beleza e a força só conseguem desempenhar duradouramente o papel de fundamento da vida social se forem acessíveis a todas as pessoas”; “quando não subsiste a possibilidade de todas as pessoas serem livres e felizes, elas se tornam igualmente escravas e miseráveis”; “hoje a genuína atividade artística é revolucionária, já que só pode existir em oposição aos valores correntes”; “a obra de arte do futuro tem que abarcar em si o espírito da humanidade livre, para lá de todos os limites das nacionalidades”; opõe-se a “manifestações do esforço hipócrita que constantemente encontramos cristalizado na história oficial da civilização em lugar da única luta real, a da natureza”.

Wagner combate ainda em “Arte e revolução” o “germanismo que educa para a guerra e para a caça, quando o homem cristão sincero deve ser levado para a continência e para a humildade”. Combate, mais abrangentemente, o Estado moderno por preparar as pessoas para ganhar dinheiro na indústria. Defende que no futuro não deva mais haver a preocupação com a subsistência, mas sim os seres deverão estar voltados a atividades naturais correspondentes a suas capacidades individuais. Condena, no campo teatral, a bipartição do drama e da ópera, vendo a realização artística como uma integração entre as manifestações diversas. Escreve que “As tragédias serão as festas da humanidade”. Para a arte ser livre e para todos, só assim sendo socialmente significativa, defende a gratuidade dos espetáculos, com obrigação de o Estado subsidiá-los.

Mikhaïl Bakunine

No mesmo ano de 1849, de “Arte e revolução”, Wagner, que era então o “Kapellmeister” de Dresden, participa efetivamente de uma revolução, com seu amigo anarquista russo Mikhaïl Bakunine. Condenado à morte, Wagner foge, vivendo exilado até a década de 1860. Em sua autobiografia (“Minha vida”) confessa que Bakunine foi o modelo para a idealização do homem livre Siegfried, herói de sua Tetralogia “O anel do Nibelungo” (constituída de quatro espetáculos: “O ouro do Reno”, “A valquíria”, “Siegfried” e “O crepúsculo dos deuses”, composta entre 1851 e 1875, durante, portanto, 25 anos).  Nela, a mitologia germânica serve-lhe de símbolo para a crítica sócio-política. A beleza do ouro pertence à natureza. Para tirá-lo daí, é preciso renunciar ao amor. Um nibelungo, ser do submundo, renuncia ao amor para roubar o ouro da natureza. Com ele forja o anel que dá poder ao portador de dominar o mundo. Sendo, por sua vez, roubado, amaldiçoa o ouro. Assim, numa visão bem anarquista, todo poder está amaldiçoado. Em 1840, Pierre-Joseph Proudhon publicou “Qu’est-ce la propriété”, definindo que “la propriété c’est le vol”. É visível a influência aí no posicionamento revolucionário de Wagner.

Esteticamente, o Wagner maduro escreve peças de ação continuada, sem interrupções para árias, com a orquestra, como um coro grego, exercendo o papel descritivo, comentando a ação, ao mesmo tempo em que desenvolve um material sinfônico com temas recorrentes, chamados “leitmotive”, que norteiam as caracterizações de personagens, ideias e sentimentos. Desejava para o espetáculo teatral a integração total das artes, a “obra de arte integral”, GESAMTKUNSTWERK em alemão. Com isto passou a considerar os procedimentos operísticos tradicionais como ultrapassados. Dizia não escrever mais óperas, e sim “dramas líricos’. Lembro que dentre eles, logo após a trágica e exasperante “Tristão e Isolda”, escreveu, em contraste, uma adorável “comédia lírica”, “Os Mestres Cantores de Nüremberg”. Um verdadeiro hino à conjugação das artes, música, poesia, canto, com crítica aos formalismos acadêmicos, mostrando a necessidade natural da obra de arte no comum dos seres humanos. E usando, para isto, de uma polifonia barroca na orquestra, com melodias marcadamente sugestivas. Tudo se passa numa cidade renascentista, com as características e simplicidade do povo, suas corporações e mexericos decorrentes das sensibilidades e necessidades naturais. O herói não é nenhum semideus ou deus, mas um sapateiro, Hans Sachs, cantor, músico, poeta, para quem ser artista consiste em não perder a paixão juvenil no correr das agruras existenciais, conjugando-se com a natureza, como no canto dos pássaros. Ao final ele conclui exaltando as qualidades dos artistas, pois a realidade política pode ser transitória, e dá como exemplo a queda do Santo Império Romano, mas a santa arte vinculada a seu povo perdurará sempre!   

Gerson Valle é poeta, escritor e advogado

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