Sentido Revolucionário do Teatro Musical - 1

Sentido Revolucionário do Teatro Musical - 1

A Arte Revolucionária por Vladimir Maiakovski

SENTIDO REVOLUCIONÁRIO DO TEATRO MUSICAL - 1

Por Gerson Valle

O texto "Sentido Revolucionário do Teatro Musical" foi escrito pelo poeta, escritor e advogado, Gerson Valle. Dividido em 4 partes, o mesmo será publicado semanalmente no jornal Catetear On-line.

PARTE nº1

Preliminarmente, é necessário que eu explicite o que compreendo por revolucionário. Os diversos modernismos que se sucederam desde o despontar do século XX sempre se queriam revolucionários. No extremo disto, em 1909 o ítalo-francês-egípcio Filippo Tommaso Marinetti lançou o primeiro manifesto futurista, a que se seguiram outros.

Filippo Tommaso Marinetti

Em linhas gerais tais manifestos pregavam o culto da máquina, das tecnologias que despontavam no tempo, a velocidade do automóvel, do avião, a agitação das cidades poluídas e de prédios altos, e por outro lado a destruição da arte e literatura do passado, inclusive da sintaxe, para que tudo se renovasse! Desta forma, tais manifestos, ao se voltarem contra o passado, expressavam artisticamente a autodestruição, pois a arte e literatura que pensavam produzir haveria, evidentemente, de se tornar também passado, e assim deveriam caminhar para a destruição. O que foi apressado, a partir de 1919, com a criação do partido fascista italiano e a adesão de Marinetti a ele. Para mim isto representa a falácia das atitudes vaidosamente revolucionárias por procurarem renovações transitórias e não a essencialidade das novas posturas.

Tenho por verdadeiramente revolucionários os movimentos que se voltam contra o “stablishment” da ideologia mantenedora de injustiças e privilégios por meio do poder imposto pela força. O fascismo como o nazismo acentuavam o culto da força e preconceitos seletivos. Sem a análise histórica corre-se sempre o risco de se repetir as injustiças, por até parecerem novidades, e se desejar a renovação como atração do tempo em que se vive. Insisto, portanto, na reflexão sobre a História, através da qual se pode atingir, inclusive, melhor compreensão sobre a alteridade, e com ela o respeito ao outro e a revolução pela construção de uma sociedade menos injusta. Os impactos causados pelas diferenças do outro, seja em concepções preconceituosas do presente ou de convicções já ultrapassadas, ajudam ao conhecimento de nós mesmos, pois, independendo das circunstâncias, somos uma só espécie. E o arquivamento do passado leva o ser humano a atitudes estanques, como se todos fôssemos um só modelo, o do momento, generalização fascistizante. Ater-se, por conseguinte a renovações só para serem contemporâneas, desprezando os valores evidenciados no passado, é de uma discriminação fascista, contrária à revolução verdadeira, que prioriza a justiça social.

Ésquilo, Sófocles ou Eurípedes

As artes atingem a subjetividade do ser que as ciências tentam explicar. Fugindo à racionalidade objetiva, apontam para campos mais revolucionários. Quem veio primeiro? O ovo ou a galinha? A Música ou a Poesia? Não vou entrar em argumentações estéreis. A poesia e a música manifestavam-se juntas desde as primeiras civilizações. O teatro na Grécia, inclusive, marcava a presença da poesia e da música. Como era ela? Não sabemos. De há muito as tragédias de Ésquilo, Sófocles ou Eurípedes são representadas só com as palavras. Assistir à paixão e inexorabilidade do destino dos personagens das tragédias coloca o espectador frente a suas próprias angústias existenciais. Libera-as, um pouco como ocorre na Psicanálise. E com a música, esta catarse parece tocar o inconsciente de forma expressiva para a renovação ante a vida. Cito Friedrich Nietzsche em “O nascimento da tragédia no espírito da música”: “O dionisíaco, com seu prazer fundamental, percebido até mesmo na dor, é a matriz comum de que nascem a música e o mito trágico.” E mais: “queremos ouvir e ao mesmo tempo aspiramos a ir além do ouvir”. O que, em si, revela a intenção revolucionária esperada na obra músico-teatral.

Florença 1600

Na cidade de Florença, em 1600, investiu-se na apresentação de um teatro musical que procurava refazer o teatro grego com a junção da poesia com a música. O resultado foi a criação de um novo gênero teatral, a ópera! De início, a ópera desenvolvia-se em danças, madrigais, interlúdios instrumentais e o que mais a caracteriza, o recitar cantando.

A ópera traz em seu bojo o espírito da revolução. O falar cantando é por si uma atitude revolucionária. A palavra que explicita o mundo exterior caminha junto com a expressão interior trazida pela música.  Em geral quem não gosta de ópera admira a formiguinha construindo com sacrifício seu abrigo, mas condena a cigarra lamentando os rigores do inverno. Não me sinto seguro ante a postura de La Fontaine parecendo simpatizar mais com nosso lado formiga. Para que trabalhar se não for para ter acesso às benesses da existência? Ao conjugar nosso lado formiga à cigarra a ópera revoluciona conceitos estanques.

A forma da ópera consolidou-se entre os séculos XVII e XVIII dividida em recitativos e árias. Recitativos onde diálogos ou monólogos faziam a situação ser explanada, e árias, onde a ação se paralisava para entrarem melodias. Estas eram normalmente na forma fixa "a-b-a e coda", acentuando-se cada vez mais a exibição de bel-canto. Um teatro predominantemente estático e sem compromisso com a realidade, mas somente com a música e cantores, tornados mais populares que o compositor ou o libretista.

Wolfgang Amadeus Mozart 

A forma de recitativos explicativos da ação entre árias emotivas, com assuntos passados na Antiguidade clássica, desenvolveu-se por dezenas de libretos do poeta Pietro Metastasio (1698-1782), que foram musicados por muitos compositores, sem a preocupação de exclusividade de sua utilização (“La Clemenza di Tito”, por exemplo, serviu de libreto para 45 óperas, inclusive uma delas com música de Mozart).

Mas, neste mesmo transcurso do século XVIII, em que os libretos de Metastasio solidificaram uma tradição, ocorreram quebras mais evidentemente revolucionárias. A mais conhecida, primeiramente, foi a de Christoph Willibald Gluck (1714-1787). Criou-se em Paris uma polêmica entre adeptos da reforma operística de Gluck, que dava ênfase ao drama ao musicar o texto operístico, e o italiano Nicolò Piccini, na tradição das árias formais com estripulias vocais, sem grandes atribulações dramáticas. A ópera desfrutava de tal prestígio no mundo cultural que a rivalidade entre as posições assemelhava-se às paixões por times desportivos do nosso tempo, nela participando os enciclopedistas franceses e até mesmo a rainha Maria Antonieta. Gluck escreveu no prefácio da edição de sua ópera “Alceste”: “Pensei restringir a música à sua verdadeira função, servir à poesia na expressão e nas situações dramáticas, sem interromper a ação ou arrefecê-la com ornamentos inúteis, supérfluos […] Pensei, além disso, que meus maiores esforços deveriam reduzir-se a buscar uma bela simplicidade e evitei exibir dificuldades em detrimento da clareza”.

Christoph Willibald Gluck

No final do século XVIII, o compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e o libretista napolitano Lorenzo da Ponte encantam-se com uma peça de Pierre-Augustin de Beaumarchais (1732-1799) que causava furor em Paris, e que muitos acham que até contribuiu para as opiniões que levaram à Revolução Francesa de 1789. "As Bodas de Fígaro" (1786) em que Mozart faz a ação musical não mais se dividir somente em recitativos e árias, mas emendar duetos, trios, coros, conjuntos, que vão marcando a ação continuada da peça. A dupla Mozart/Da Ponte, com esta ópera e as duas que se seguiram, “Don Giovanni” (com base, dentre outras peças teatrais, no “Don Juan” de Molière) e “Così fan tutte” perpetraram a grande revolução estrutural do gênero, que passou a ser, efetivamente, o espetáculo onde a música descreve a ação teatral e o espírito da cena. Na Cena do Banquete de “D. Giovanni”, por exemplo, a música alegre que acompanha o jantar muda com a aparição dramática de Dona Elvira reivindicando direitos de mulher traída, atinge o terror com seu encontro com o fantasma do Comendador no jardim, culminando na tragédia da morte  de Don Giovanni e sua condução ao inferno. Isto é ópera, ou seja, a expressão por música da ideia lírica ou dramática sequencialmente. Não é à toa que “Don Giovanni” foi designada por Wagner de “a ópera das óperas”.

Curiosamente, Mozart compôs 23 óperas (sendo a primeira aos doze anos de idade), sempre se destacando sua música genial, que abordava todos os gêneros. No entanto, o fenômeno diferenciado da ópera no sentido de junção de ato cênico com a música, fica mais especificado nas três com libreto de Lorenzo da Ponte e em “A Flauta Mágica”, que ele mesmo ajudou nas ideias do libreto de Emanuel Schikaneder, um empresário teatral com uma grande sensibilidade cênica. Numa forma chamada em alemão de “Singspiel” os recitativos secos são substituídos por falas sem música, puro teatro. O imperador José II da Áustria parece ter querido destacar este tipo germânico de ópera quando encomendou a representação em 1786 na “Orangérie” do palácio de Schönbrunn, em Viena, após um almoço festivo, duas óperas curtas, como querendo demonstrar a vantagem em se ter um produto cultural próprio, quando desde o nascimento da ópera, em toda parte, predominava o texto em italiano com apresentações de árias alternadas a recitativos acompanhados por cravo. O “Singspiel” foi “O empresário teatral”, com música do austríaco Wolfgang Amadeus Mozart e libreto de Johann Gottlieb Stephanie.

Antonio Salieri

A ópera italiana foi encomendada ao compositor italiano radicado em Viena Antonio Salieri, com libreto de Giovanni Batisti Casti, e seu título era bem original, “Prima la musica e poi le parole” (“Primeiro a música, depois as palavras”), classificada como um “divertimento teatral”. Seguindo a tradição italiana, esta ópera queria dizer que a música tem prioridade neste gênero, ao passo que o “singspiel” colocava a música dentro de um espetáculo teatral. A única ópera de Ludwig van Beethoven, “Fidelio”, segue a forma de um “Singspiel”, e atinge o âmago do sentimento revolucionário, exaltando a liberdade contra qualquer tirania.

Gerson Valle é poeta, escritor e advogado

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