Urgências Literárias - Pé Frio 2

Urgências Literárias - Pé Frio 2

Urgência Literárias

 CAPÍTULO 2

“ O PÉ-FRIO”

Por Arthur Guimarães

È fácil identificar o “pé-frio” do plantão: é aquele que , ao chegar provoca suspiros da enfermagem.

- Ah, não! È ele hoje!

- Ninguém vai dormir esta noite!

E não dorme mesmo. Ninguém sabe ao certo a causa deste fenômeno, mas alguns poucos plantões são suficientes para macular um profissional de saúde com a fama de “pé frio” e um apelido temporário e (felizmente) transmissível: “Dr. José Maria” em alusão ao personagem do famoso cineasta  “Zé do Caixão”.

As palavras: “temporário” e “transmissível” denotam o caráter obscuro daquele fenômeno. Parece incrível, mas geralmente ninguém fica “pé-frio” para sempre. Um dia o sujeito, ou a sujeita volta de férias e o plantão corre calmo...

- Ué! Que que houve?

- Esquentou o pé?

O “pé-frio” respira aliviado...passou! Mas...pode esperar! Sabe aquela moça quietinha, tranquila?

- Que que tem?

- Ninguém mais tem sossego nos plantões dela!

Parece superstição, mas não é. É fato tão real que modifica a moeda de troca:

- Plantão com pé frio, paga dobrado!

- Não, pera aí...eu faço uma troca. Ponho o pé-frio em outro plantão!

- Então tá!

Já se cogitou em tentar aplicar um questionário periódico para conscientizar as pessoas. Do tipo - teste se você é um “pé-frio”: Seus colegas costumam tirar licença nos plantões com você? ou: a gráfica do Hospital já te ofereceu atestados de óbitos personalizados?; ou ainda: já percebeu se o consumo de oxigênio, gasolina,  bisturis e bateria de desfibriladores é maior nos dias em que você está de plantão? 

A idéia até que era boa, mas foi revogada pois poderia ser considerada discriminação, e, afinal de contas, apesar de o “pé-frio” ser uma potencial causa de aumento de absenteísmo dos colegas de trabalho (falam até de suicídio em casos mais graves), é também, por outro lado, um eficiente “canalizador” de clientes para um Hospital.

Neste capítulo, não posso deixar de homenagear uma colega de residência no interior de São Paulo. Caso grave. Diriam os mais científicos:

- pé-frio” grau 4!

Era, ou melhor, ainda é excelente profissional e colega. Não a vejo há uma década. Sei que se livrou do estigma mudando de especialidade: tornou-se radiologista e, com certeza, das melhores, mas no passado fora uma “pé-frio” consciente e conformada. No plantão dava-se conta de que a causa era ela, e chegava a pedir desculpas:

- Olha, eu sei que o plantão tava calmo...pode ir descansar que eu resolvo sozinha!

Trabalhadeira que só ela! Associava sua resignação àquela sina com uma disposição incrível para o trabalho. Claro que ninguém tinha coragem de se aproveitar disso, e os plantões com ela eram verdadeiros testes de resistência.

Mas um dia ela se superou. Eu estava de plantão num Domingo de dia, véspera de feriado. Plantão tranqüilíssimo, atendimentos calmos, tudo correndo às mil maravilhas até que, faltando 5 minutos para as 19 horas, sentimos a aura cinzenta da nossa amiga.

Enquanto ela estacionava o carro no pátio, chegou um rapaz inconsciente, atingido por um raio, seguido por uma moça com coma e em choque por cetoacidose diabética, sendo que a esta altura a colega já ajudava a levar uma maca para um acidentado com traumatismo craniano. Daí para a frente, não parou mais: Acidente vascular cerebral, picada de cobra, envenenamento, crises hipertensivas, bronquites asmatiformes, pneumonias, alcoolismo,etc foram nossos companheiros noite adentro, até de  manhã, quando fui para a enfermaria passar visita nuns 20 doentes...vida dura!

- Próximo plantão somos nós de novo, né?

- Acho que não...talvez precise trocar...

Arthur Guimarães é cardiologista