O Menino do Canto

O Menino do Canto

O Menino no Canto

Por Patrícia Nunes

Conheci a história triste da família por conversas com outras pessoas da comunidade muito carente em que eu prestava assistência. Como em centenas de famílias que vivem abaixo da linha da pobreza, esse menino era mais um. Completamente invisível para a sociedade.

O Bicho

Vi ontem um bicho

Na imundice do pátio

Catando comida entre os detritos

Quando achava alguma coisa

Não examinava, nem cheirava

Engolia com voracidade

O bicho não era um cão

Não era um gato

Não era um rato

O bicho meu Deus

Era um homem

(Poema de Manuel Bandeira)

Não posso precisar sobre o exato momento em que o vi pela primeira vez, pois foram muitas as vezes em que estive com ele, ora ajudando com alimentos, ora tentando levá-lo a praticar algum esporte em uma de minhas escolinhas esportivas, que normalmente atendiam crianças oriundas de famílias muito pobres, desequilibradas e que não tinham outras atividades fora da escola. A escolinha de futebol que montei para atender aquelas crianças, tirá-las das ruas e das más companhias, iniciou-se com 15 alunos e finalizou em seu auge com 120. Por fim, a falta de patrocínio, não me deixou escolha e não tive como obter recursos para manter o Projeto.

Toda semana eu ia para o campinho, e durante o jogo, distribuía leite para as famílias mais carentes. Leite esse que eu obtinha de doações de comerciantes locais, de forma que as crianças não passassem tanta fome nos finais de semana, dias que não tinham aula e, consequentemente, ficavam sem merenda.

Toda semana eu ia para o campinho, e durante o jogo, distribuía leite para as famílias mais carentes. Leite esse que eu obtinha de doações de comerciantes locais, de forma que as crianças não passassem tanta fome nos finais de semana, dias que não tinham aula e, consequentemente, ficavam sem merenda. Entretanto, posso afirmar com a mais absoluta certeza sobre o momento em que o enxerguei. Dentro desse período de existência do Projeto, vivi muitas situações que me transformaram. Mas nenhuma experiência tão intensa como a que experimentei ao ver aquele pequeno menino, franzino, descalço, de cabeça baixa. O menino no canto do campo de futebol, olhava timidamente para os outros colegas que jogavam bola. Aquele menino estava sempre lá. Todas as vezes de cabeça baixa, olhando à distância de um cantinho no campo. Sempre a mesma roupa suja, curvado e quieto, como se tivesse constrangido e parecendo achar que não deveria ou merecesse estar ali.

Após a terceira semana me aproximei. Perguntei o porquê de ele não jogar com os outros. Mas ele não respondeu. Insisti, e perguntei novamente, só que de forma diferente: - Você quer jogar com os outros? Pela primeira vez ele me olhou nos olhos e me disse, com a cabeça, que sim, mas sem pronunciar uma palavra. Não tinha chuteira ou tênis e seu único calçado era um par de chinelos que usava para ir a escola. Ele acabava andando descalço para economizar o chinelo. Durante a semana catava as sobras no "caminhão do osso", restos de lixo orgânico de um mercado local que as famílias pobres faziam fila para conseguir um pedaço de sebo que fosse, a fim de consumir como alimento.

Ele ia para a escola e a volta para casa, de um cômodo, era para viver um martírio de ter um pai alcóolatra e viciado, que abusava sexualmente da família inteira, inclusive de suas irmãs pequenas. Uma vida infeliz, em que a dignidade passava longe. Dei início a minha luta para tirá-lo do canto e proporcionar a ele o mínimo de alegria. Coloquei na rede social um pedido de uma chuteira, contando resumidamente a história (excluindo os detalhes mais cruéis). Meu pedido foi atendido onze vezes. Ele ganhou onze chuteiras e combinamos que ele ficaria com as duas que mais gostasse e ajudaria outros amiguinhos que estavam nas mesmas condições que ele. E assim começou nossa história. Em pouco tempo ele se tornou o melhor jogador em campo e havia nos seus olhos um brilho que nunca houvera antes. Todavia a tristeza ainda estava lá.

Pouco tempo depois, os constantes abusos do pai culminaram com uma denúncia da creche, envolvendo o Ministério Público, que determinou que as crianças fossem levadas ao abrigo municipal. E que a mãe, uma mulher sofrida, vítima de anos incontáveis de violência e abusos, acabou também sendo punida, com a retirada da guarda dos filhos.

Não me coube outra decisão a não ser abrigar toda a família e assumir as 4 crianças. Não tenho dúvidas hoje que a minha decisão foi salvá-lo. Claro, o sofrimento fora imposto à toda família. E salvar a família significava libertá-lo também. Apesar de todas as dificuldades que passamos, nunca me rendi, nunca nos rendemos, nunca me arrependi. Ao pai abusador foi comutada a pena de 20 anos, dois meses e vinte dias em apenas um dos processos por estupro de vulnerável. Nesse assunto não tocamos mais. Passaram-se 4 anos e desde então ele (e eles) nunca mais precisou catar restos. Aprendemos várias coisas juntos. A mais importante delas é que não devemos jamais desistir do outro. O amor e a compaixão são bens que precisamos cultivar dia após dia, dentro de nós. E quando nos perguntamos se a humanidade ainda tem jeito, precisamos refletir sobre como anda a nossa humanidade.

Semana que vem eu volto. 

[i] O Bicho. Escrito por Manuel Bandeira, no Rio de Janeiro, em dezembro de 1947, o poema aparentemente simples, mas desconcertante, retrata a realidade social do Brasil de sua época. www.culturagenial.com.

Patricia Nunes Defensora e Ativista dos Direitos dos Animais

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e-mail: psnunes044@gmail.com

Ilustração: Luiz da Pedra