Compositor Hélio Sena
entrevista exclusiva
Série de entrevistas: Compositoras e Compositores do Brasil
Catetear - Cultura, História, Política
Série Compositoras e Compositores do Brasil
Hélio Sena: Temos que buscar a poderosa e perfeita identidade entre a terra, o homem e sua arte, exaltar a vida e revelar através da música toda a sabedoria do preceito do poeta Fernando Brandt: “Todo artista tem de ir aonde o povo está”.
Por Luiz Carlos Prestes Filho
Em entrevista exclusiva para o jornal Catetear, Hélio Sena afirmou: “O caráter da criação de um compositor traz a expressão de sua subjetividade individual, de sua vivência pessoal e na maioria das vezes busca retratar uma situação particularizada. O folclore não. Ele é filtrado e depurado pela coletividade através dos tempos e traz o princípio genérico. A canção folclórica serve como modelo pela simplicidade, clareza, sobriedade e organicidade.” Para o compositor: “A Academia Brasileira de Música (ABM) pretende ser apenas uma galeria de imortais. Instituições como a Ordem dos Músicos do Brasil e os Sindicatos dos Músicos deveriam projetar ações sobre muitas questões candentes: o desemprego do músico é grande; a evasão de divisas por pagamento de direitos autorais ao estrangeiro atinge milhões; a mídia varreu de sua programação a música instrumental; a educação musical é praticamente inexiste na escola pública; não há uma política de criação de orquestras nos estados.”
Luiz Carlos Prestes Filho: Música de Concerto, Música Erudita ou Música Clássica?
Hélio Sena: Qualquer das três denominações tem inconvenientes, mas dá para entender quando usadas.
O compositor Hélio Sena na residência estudantil do Conservatório Tchaikovsky, com os colegas de turma, ex-União Soviética, Moscou, 1965, hoje República Federativa da Rússia (ele é o segundo na segunda fileira, da direita para a esquerda)
Prestes Filho: Beber na fonte da cultura brasileira foi importante para o surgimento da sua linguagem própria? Você muitas vezes afirmou que dedicou a vida a ouvir, a estudar e a registrar a música do povo. Conte sobre suas origens musicais e como estas serviram de base para seu ingresso na academia.
Hélio Sena: Minha mente infantil foi moldada pela música tradicional do interior de Minas Gerais: rezas, modinhas, cantigas de roda,bailes, cantoria em volta da fogueira. Nos meus primeiros anos o lugar não tinha luz elétrica nem rodovia, de modo que aí não chegavam automóveis ou transmissões de rádio e eu gostava muito da música que tínhamos. Até hoje me emociono ao ouvir as antigas rezas de procissão. Cantadas coletivamente pelo povo revelam a um só tempo o peso da contingência humana e uma resignação profunda. Já os toques de sanfona e viola variam entre as terças paralelas com sua nostalgia indefinida e as brincadeiras digitais sempre enfeitadas de rendas, arabescos ou travessuras melódicas. Os gêneros da viola do Sudeste costumam trazer um balanço molenga, relaxado e gostoso, bem representativo da corporeidade que impregna e distingue positivamente toda a música popular brasileira. Corporeidade essa que está presente no ritmo, na emissão vocal, na melodia e até na harmonia. É a prazerosa ludicidade das sensações corpóreas que costumam colocar nos lábios dos músicos aquele leve sorriso enquanto tocam, e manifestar-se no abraço de comemoração que se dão no final da execução. Os gêneros sertanejos são em grande número. Eu consegui reunir trinta. Naquele lugarejo perdido no sertão remoto, mesmo antes da chegada do rádio, a música era intensa e bela, pois tínhamos a banda, dois grupos de choro, serestas nas noites de luar, e missa cantada em estilo barroco uma vez por ano. Mais tarde com a chegada do rádio, passamos a ouvir duplas sertanejas, Luiz Gonzaga e cantores do Rio. Já no seminário religioso participei do coro a quatro vozes do internato e cantávamos orações e missas complexas dos clássicos.
Diploma do compositor Hélio Sena, emitido pelo Conservatório Tchaikovsky (1963/1970), na época União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), hoje República Federativa da Rússia.
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"Moscou foi para mim uma decisiva troca de nível, um centro de intensa vida musical, onde o virtuosismo dos intérpretes convive com o refinamento estético, com o rigor das tarefas escolares e com a pesquisa aprofundada. Constatei existir ali um excepcional nível dos estudos teóricos da música e da correspondente didática de ensino. Cada disciplina de estruturação musical, além da conceituação e de exaustivos exercícios escritos, passa sequencialmente por realização ao piano e análise de obras artísticas. Para todo esse trabalho os russos possuem abundância de manuais detalhadamente elaborados, às vezes com diferentes abordagens para o mesmo assunto. Em muitos casos, como na Polifonia e Análise das Formas a diferença de aprofundamento é tal que, chocou-me a inexistência de terminologia apropriada em português para referir-se a importantes técnicas ou fatos descritos." |
Hélio Sena - canções brasileiras para os colegas de turma do Conservatório Tchaikovsky, Moscou
Assim, depois de alguns anos no curso de composição, optei por dedicar-me a área teórica com o objetivo de trazer ao Brasil uma contribuição significativa. Tão logo retornei ao Brasil, iniciei meu trabalho dando aulas de História da Música, Harmonia e Polifonia na Pro Arte do Rio de Janeiro. Entre os alunos quero destacar Antônio Guerreiro que por muitos anos suportou realizar semanalmente as duras tarefas da metodologia russa. Tornou-se professor de harmonia e por mais de trinta anos conduziu os estudos dessa disciplina no Instituto Villa-Lobos. Apesar da trabalheira não usual e das cobranças que fazia, sempre ouvi elogios de seus alunos, que afirmavam demonstrar sólido desempenho quando testados no Brasil e no exterior. Frequentemente as turmas do Guerreiro encerravam o curso comemorando-o com uma festinha e um bolo de despedida. Eu porem não permaneceria muito tempo com as disciplinas teóricas. Sempre me atraiu a música folclórica. Ela é funcional, gerada pelas pessoas comuns em contato com o seu chão e com a realidade do seu cotidiano, dessa forma carrega em si a alma do povo, a refletir seu jeito autêntico de perceber e se expressar. O caráter da criação de um compositor traz a expressão de sua subjetividade individual, de sua vivência pessoal e na maioria das vezes busca retratar uma situação particularizada. O folclore não. Ele é filtrado e depurado pela coletividade através dos tempos e traz o princípio genérico. A canção folclórica serve como modelo pela simplicidade, clareza, sobriedade e organicidade. Além disso ela apresenta nos seus múltiplos aspectos mais diversidade do que a música comercializada. Por isso resolvi dedicar meu tempo na Instituto Villa-Lobos, UniRio, buscando exemplos significativos do folclore e da música popular para partilhar com os alunos. Desci logo ao Brasil profundo. A primeira apresentação de arranjos meus foi feita por um quinteto vocal, interpretando: cantiga de cego, aboio, reza de penitência, gemedeira e acalanto.
Hélio Sena de pé, ao fundo. Da esquerda para a direita Rafael Linsondo, compositor mexicano, Roberto Bravo, pianista chileno, e a cantora americana, Zarefah Storey
Prestes Filho: Os seus dois discos – “Cantigas” e “Entradas e Bandeiras” - privilegiam melodias recolhidas do folclore, ao lado de canções criadas a partir de células rítmicas ou entonações características da música do interior brasileiro. Como os temas poéticos guiaram a realização destes trabalhos? Como as harmonias aprendidas com os músicos regionais influenciaram a realização destas gravações?
Hélio Sena: Em 1975 na preparação do disco Cantigas, realizei o experimento de buscar uma sonoridade brasileira para uma orquestra típica de timbres regionais, onde a presença da viola sertaneja, da sanfona e de uma dupla de flautas pife ou de bambu era a ideia inspiradora, para vestir um coro bastante rústico a interpretar músicas do folclore ou dele derivadas.
Mas a surpresa que me arrebatou viria do Nordeste. As canções e toques modais de sanfona emanam um colorido e frescor inigualáveis. Trabalhando com cinco modos que às vezes se cruzam, o interior nordestino cria um estilo melódico que sabe ser a um só tempo acessível e sofisticado, onde as cadências melódicas VI –I, VI–I–III, IV – I e outras soam como um gesto diferenciado e refinado. A ambiguidade na definição das atrações tonais traz encantadora flutuação da melodia, realçando em cada modo o viço e o esplendor próprios. Para harmonizar essa música, rejeitei as práticas vindas de fora dela e busquei com os próprios sanfoneiros da região a versão deles. Ninguém melhor do que eles para sentir e vestir com acordes suas próprias melodias. A pesquisa de constâncias harmônicas resultou na minha tese de livre docência - o doutorado de então. A novidade não está na complexidade vertical dos acordes, mas na insólita ordem de seus encadeamentos. Além de tudo isso, às vezes encontramos até sistema não temperado no canto. Existe também binaridade modal, com superposição vertical de mixolídio e lídio, dórico e mixolídio, o que resulta numa sonoridade tensa e policromada. A pesquisa de campo foi longa, com viagens ao sertão nordestino, participação franca dos alunos e frutificou-se no lançamento do disco “Entradas e Bandeiras”, em 1981. Dele constam composições, arranjos corais e instrumentais escritos para aplicação em aulas. Para a música de conserto, considero a experiência com modos muito promissora, haja vista o sucesso histórico de R. Korsakov e C. Debussy, Guerra Peixe, Hekel Tavares e tantos outros.
Prestes Filho: Qual sua opinião sobre a crítica da música contemporânea no Brasil e no mundo? Afinal, você foi aprovado para o ingresso no Conservatório Tchaikovsky pelo compositor Aram Khachaturian e teve aulas de instrumentação com o compositor Alfred Schnittke. Esteve várias vezes na presença do compositor Dmitri Shostakovich. No Brasil você conviveu com o maestro Cesar Guerra-Peixe. Quem são aqueles críticos que realizam um trabalho que merece reconhecimento no campo da música contemporânea no Brasil e no exterior?
Hélio Sena: Infelizmente no Brasil a crítica musical desapareceu dos jornais e revistas. Persiste um pouco a crítica acadêmica, onde vem surgindo bons trabalhos em forma de resenhas e alguns livros sobre a música do passado. Considero Vladimir Safatle um nome importante do setor. No meio acadêmico adotou-se uma atitude recatada e receosa de manifestar opinião avaliativa do que ouvem. Preferem o silêncio. Às vezes saem pela tangente com ‘tudo é música’, ‘música é tudo que soa e tudo que não soa’, ou então: ‘não é meu estilo, mas “é válido”. Parece-me que esse recato a fingir uma tolerância esnobe, é apenas um figurino postural da elite, que mimetiza uma moda acadêmica, como qualquer consumismo irracional das grifes. A impossibilidade de emitir um juízo valorativo, mostra que não vivemos a liberdade de expressão que existia na Alemanha no século 19, quando todo o país fervilhava de inflamadas polêmicas sobre a predileção por Wagner ou por Brahms. Mesmo no Brasil, no tempo dos festivais da canção, até início de 1964, houve vigoroso debate sobre a música popular, abordando o aspecto estético, o social e o filosófico. Por que o marasmo de agora com relação à música contemporânea? Precisamos de uma crítica que, ao falar de música, fale de seu sentido estético, emocional e conceitual, pois trata-se de arte, e não deve, portanto, se limitar a comentários técnicos sobre objetos sonoros. Ao contrário da música, no cinema e no teatro existe crítica, sim. Até recentemente, atrizes e atores prendiam a respiração nas estreias, para ouvir com respeito as opiniões bem fundamentadas de Bárbara Heliodora. No futebol também vemos crítica escancarada sobre todos os aspectos na grande mídia. É evidente. O futebol tem grande público e daí sua importância social, o que nos leva a inquirir sobre o tamanho do público e a importância social da música contemporânea. Mas apesar desse paralelo, e de outros fatores desfavoráveis à crítica como o baixo nível educacional da população, não deve faltar aos críticos a coragem de aparecer e provocar o debate sobre a verdade da música de concerto que hoje se faz no país. Do mesmo jeito que na música popular tivemos o J. Tinhorão, que ninguém conseguiu intimidar, também tivemos o compositor Guerra Peixe, que opinava com espontaneidade e desassombro sobre qualquer tipo de música. E fundamentava. Com a travessura e a rebeldia de sua personalidade, era divertido ouvi-lo dizendo o que muitos não tinham a coragem de dizer. Mas creio que não deixou publicações nessa área. Considero que, mesmo sem levar em conta uma obra específica de qualquer autor, para um crítico, a música dita contemporânea tem inúmeros pontos merecedores de debate, a começar pelo conceito de contemporaneidade.
Prestes Filho: Cite nomes de compositores que foram fundamentais para a sua formação. Também, aqueles que você acompanha no Brasil e no mundo. Também, algumas obras que tiveram importância estruturante na sua formação.
Hélio Sena: Se considerarmos os processos da semântica do discurso musical, os compositores do classicismo e do romantismo nos deixaram a mais complexa base de possibilidades de estruturação formal. Na minha opinião, muito do que aconteceu depois do impressionismo foi motivado pela busca de simplificação, de desconstrução, de discriminação excludente de aspectos da linguagem e de experimentos centrados nos elementos básicos da música. Digo isto, não desconsiderando a excelência de sonoridades, efeitos e recursos advindos dessa fase. Mas eu destacaria a contribuição de Bach e Beethoven como fundamentais para minha formação. Na música popular brasileira Luiz Gonzaga e Pixinguinha foram importantes. Entre os compositores vivos estrangeiros eu acompanho, entre outros, dois britânicos, Karl Jenkins e David Fanshaw, que buscam a modernidade incorporando em suas criações a música étnica não europeia e mantendo com renovação a base modo-tonal. Aprecio o japonês I. Tomita, que, desde seus primeiros trabalhos até 2015 com “Space Fantasy”, usa sintetizadores para vestir e transfigurar páginas importantes da música clássica europeia. No Brasil tenho dedicado atenção especial a Elomar e Dominguinhos, seduzido por sua potência criativa e seus encadeamentos harmônicos modais. Ao falar de obras que influenciaram a minha formação, eu prefiro entender sua importância estruturante, não como técnica de construção da música, mas como seu poder expressivo na qualidade de arte. Mesmo assim é difícil. Foram tantas. Dos primeiros contatos, me vem à mente a “Fantasia Cromática e Fuga" de Bach, magistralmente interpretada ao cravo por Wanda Landowska, e relembro as impressões de então. Percebi a “Fantasia” como uma obra filosófica, uma exposição metafísica do dilema humano diante do mistério insondável da natureza. Ela parte do ré menor e investiga insistentemente os limites mais remotos do sistema tonal. Luta bravamente por superá-los. Vacila, lamenta. Mas o universo impõe seu mistério como um dilema irremovível, levando ao reencontro final com o ponto de partida, ré menor, tal qual o sofrido retorno do filho pródigo ao seio paterno. Terminada a “Fantasia”, sempre caracterizada por seu errático ímpeto improvisativo, Bach sintetiza toda a verdade daquela trágica jornada em um único tema e o submete à lógica rígida da forma de Fuga. Aqui, a presença do impasse existencial triunfa como imagem viva, mas sua subordinação ao conhecimento racional vigora como vitória da consciência. Outras obras que me impressionaram foram as de Grieg. Talvez por sua natureza de nórdico, ele não se entrega aos arroubos apaixonados do romantismo a que pertence. Sabe ser contido e tocar de leve o coração. Nos andamentos lentos em versão orquestral, como em “The Last Spring”, seu encantador e sutil lirismo nos conduz a esferas de uma serena paz espiritual. A música de total simplicidade e clareza, paira acima da contingência humana num reino de transcendência e plácida bonança. A emoção do enlevo é de uma oração à luz. Perguntamos: até que instâncias de bela elevação o espírito humano pode chegar?
Prestes Filho: Você escreveu arranjos para melodias folclóricas e populares, fez algumas composições, sempre com o objetivo de produzir material para o Canto Coral e a Prática de Conjunto. Você entende que seu esforço de abrasileiramento dos conteúdos dessas disciplinas foi bem sucedido? Hoje você está desenvolvendo coros modais, como parte de um trabalho teórico sobre constâncias harmônicas dos modos nordestinos. O que mais toma seu tempo, a pesquisa ou a escrita? A “Coletânea de Composições e Arranjos Corais”, recentemente editada, oferece uma visão das suas prioridades e interesse?
Hélio Sena: O esforço de abrasileiramento, sim, foi bem sucedido. Porque em 1971 não havia música popular brasileira em nenhuma escola. Ela era proibida nos conservatórios, e expulso da sala o aluno que desobedecesse. Naquele ano eu tive o prazer de introduzi-la na disciplina Música de Câmara do Instituto Villa-Lobos e ela se espalhou por muitas outras disciplinas práticas e teóricas. Isso me parecia tão óbvio. A partir daí seu ensino alastrou-se por todo o país, e hoje dificilmente se encontra no Brasil uma única escola que rejeite a MPB. Mas falta muito nessa área. Faltam pesquisas, estudos, exemplos adequados para a teoria, publicações, material preparado para o trabalho didático. O esforço para sanar essa deficiência deve expandir-se para toques de viola e sanfona, rezas, gêneros, dramaturgia. A edição de alguns coros meus, são uma pequena contribuição.
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"O coro é o conjunto mais espalhado pelo país. Existe em escolas, empresas, igrejas e universidades. Como objetivo imediato, eu planejo concluir a série de coros modais, para que as pessoas possam embelezar os seus dias com o canto comunitário. Serviriam também para exemplificar na prática a tese que escrevi sobre harmonia modal nordestina, pois encontro às vezes músicos populares que não avaliam o interesse dos modos e tratam inadequadamente as melodias modais. Desde muito venho alimentando meu baú com canções sem palavras e temas musicais próprios, que ficam lá à espera de que eu possa trabalha-los. Na condição de aposentado, eu atendo alunos e, para fazer isso, sou forçado a dedicar muito tempo ao estudo e à leitura." |
Hélio Sena e Pedro Castello, Elisabeth Rocha, Mario Ferraro, Claudia Alvarenga, Sheila Zagury, Rosana A. Rodrigues, Eliane Tassis, Laura Valle, Gilberto Figueiredo, Pierre Descaves, Fábio Nin, Adriana Miana, Eduardo Feijó, Sérgio Sansão e Ana Lúcia Santoro
Prestes Filho: Em 1974 você foi finalista do concurso de Composição e Arranjos Corais pelo Madrigal Renascentista - Fundação Artística, com a composição "No silêncio da madrugada", em Belo Horizonte. Em 1977, você foi premiado no Concurso Nacional de Composição da Universidade Federal da Paraíba, com a composição "Visão sertaneja"; em 1978 foi premiado pela Secretaria de Educação e Cultura do Estado da Paraíba, com "Cantiga de cego". A palavra inspira a sua música ou a música vem antes da palavra?
Hélio Sena: Quando trabalho com composição, a melodia vem sempre antes, e o pensamento musical às vezes está presente, como um devaneio melódico ininterrupto. Entretanto um bom texto pode trazer ambiência e motivação inspiradora para a música. Neste caso, primeiramente a métrica poética sugere um ritmo musical. Em seguida, com base neste ritmo, a melodia capta a ambiência geral do texto poético, porém nunca se move adstrita ao sentido de cada palavra. Um fluxo musical inédito pode também advir da audição de outra música. Ocorre, entretanto, que a longa imersão em análise racional ou no rigor das abstrações tende a fragilizar e secar o impulso criador da música. Como ouvinte de repertório vocal, para mim a música é sempre mais importante e arrebatadora do que as palavras. Mesmo ouvindo cantores e coro, sigo as vozes como se fossem instrumentos musicais. Minha atenção é sequestrada pela música e tenho dificuldade de acompanhar as palavras.
Coro Juvenil UNIRIO e Coral Oficina UNIRIO - Hélio Sena no centro
Prestes Filho: Qual tem sido a contribuição dos compositores brasileiros vivos de música contemporânea para com o desenvolvimento da técnica da escrita musical? Podemos identificar uma proposta brasileira? A nossa música contemporânea já conquistou a cena internacional? Como superar a dicotomia existente no Brasil entre Música Folclórica/Música do Povo e a Música de Concerto/Erudita/Clássica?
Hélio Sena: Em meio a tanta diversidade de caminhos, acredito que haja contribuições em todas as frentes, mas destaco aquelas situações em que a ambiência dos vídeos ou da fala é feita com recursos eletrônicos, sons “sampleados” da natureza e uso de sintetizadores. A competência em operar com laboratórios e equipamentos eletrônicos são uma contribuição valiosa dos compositores de música contemporânea, que acaba por atingir todos os estilos e gêneros de música. Sobre a existência de uma proposta brasileira eu pergunto: Que sinais ou indícios poderiam identificar uma proposta brasileira? A temática, textos poéticos, a linguagem falada, o ritmo, a melodia, traços sociais, fatos históricos, motivos paisagísticos? Não identifico na maioria dos compositores do país qualquer proposta que se possa chamar de brasileira, ou de qualquer outra nacionalidade. Isso parece não entrar na esfera de interesse da maioria deles. Alguns até fogem de utilizar o idioma português. Há temas que sendo universais não caracterizam o Brasil, como os atos do culto religioso, os direitos humanos, a ludicidade infantil. Falar da tolerância ou gosto pela diversidade refletidos numa obra musical como indício de brasilidade é muito abstrato, e caracteriza muitos outros povos. Caso esses compositores quisessem teriam à sua disposição um rico panorama de temas para se inspirar. O que se faz no Brasil hoje em termos de música de concerto, a meu juízo, está longe de conquistar a cena internacional. Se vasculharmos a programação internacional de concerto só encontraremos as obras mais divulgadas de Villa-Lobos. Não vejo como superar a dicotomia entre o popular e o erudito, pois essa dicotomia se fundamenta na profunda divisão de classes da sociedade brasileira. A desigualdade que nos separa está na base da diferença de como percebemos o mundo. A música clássica difere da popular por seu método de construção e escuta. Na música folclórica e popular a forma hegemônica é a canção. Na música clássica dois traços do método a tornam diferente: a elaboração temática e a polifonia, além de um grande número de formas. De novo: só a educação, a partir do ensino fundamental e se for bem feita, poderá contribuir para aproximar os polos extremos da nossa sociedade.
Prestes Filho: Você acompanha os trabalhos da Academia Brasileira de Música (ABM)? Você sempre foi ativo participante da Ordem dos Músicos do Rio de Janeiro, membro do Conselho Regional, quando criou a "Comissão de defesa dos interesses profissionais dos músicos". Também atuou no Sindicato dos Músicos como membro da Diretoria. Você entende que o compositor deve continuar participando de associações e sindicatos? Muito jovem você conheceu o compositor e maestro José Siqueira, que inclusive lhe deu uma Carta de Recomendação para seu ingresso no Conservatório Tchaikovsky, da ex-União Soviética, hoje Rússia. Ele foi sempre um homem preocupado com as lutas populares. O Siqueira é para você um exemplo?
Hélio Sena: Acho que a ABM pretende ser apenas uma galeria de imortais. Instituições como a Ordem dos Músicos do Brasil e os Sindicatos dos Músicos têm a representatividade oficial, mas geralmente não levantam bandeiras importantes, e quando o fazem, não conseguem mobilizar músicos famosos em defesa de suas causas. Mesmo assim, com sua reduzida força política, deveriam projetar ações sobre muitas questões candentes: o desemprego do músico é grande; a evasão de divisas por pagamento de direitos autorais ao estrangeiro atinge milhões; a mídia varreu de sua programação a música instrumental; a educação musical é praticamente inexiste na escola pública; não há uma política de criação de orquestras nos estados. Os incentivos fiscais permitem empresas gravadoras, restaurantes e casas de espetáculo descontarem do ICMS devido os gastos com pagamento de músicos. Porém esse incentivo continua sendo usado para contratação de artistas do exterior e a gravação de músicas estrangeiras. Com isso o dinheiro público é usado para pagar e divulgar no país astros do “show business” internacional e consequentemente aumentar o desemprego de músicos brasileiros e a remessa de royalties para o exterior. A penetração mundial da cultura americana, não se deu por acaso, foi resultado de uma estratégia cuidadosamente preparada, que teve início antes da primeira guerra mundial, com a clara consciência de que logo atrás de seus filmes, exportariam para o mundo o seu modelo de consumo e todas as demais mercadorias. Instalou-se desde então um colonialismo cultural: queremos ser como os americanos, falar, vestir e cantar como eles. A música, a dança, e os bens de consumo americanos passam a ser símbolos de avanço civilizatório. Assim, a elite brasileira se apressaria em aderir ao interesse do dominador, justificando ao mesmo tempo seu desprezo pela classe pobre que a serve. Este é o quadro atual. Ao retornar ao Brasil, em 1970, depois de oito anos fora, deparei com uma situação anômala. Dia e noite pela mídia ouvia-se música em um idioma que nossa população não fala nem entende. Tive a impressão de estar num país militarmente ocupado. De lá até agora, felizmente a situação mudou parcialmente. Mas falta muito para resgatar o pleno direito a nossas linguagens, pois a mente colonizada está nas universidades, no comércio, nos cinemas, no repertório de cantores e instrumentistas, nas orquestras. O poder da palavra não se limita a expressar a realidade, ela cria realidade. Mas para além do aspecto conceitual, a música como linguagem adiciona empatia e adesão afetiva às mensagens. Povo sem cultura é fácil de ser dominado. E o artista tem a função de órgão sensorial da sociedade, destinado a captar e reverberar, às vezes de forma antecipada, situações que escapam à percepção de muitos, mas são fundamentais para avanços e transformações. Merece especial atenção a importância da música na formação do cérebro da criança e os benefícios para seu desenvolvimento.
Compositor Hélio Sena, pesquisador da música brasileira
O pesquisador inglês Dr. Graham Welch, dedicado à investigação da educação musical, expõe estudos da neurociência fundamentados em ressonância magnética do cérebro, realizados em diversos países. Tais estudos demonstram em imagens que a música mobiliza simultaneamente diferentes funções do cérebro, integrando-as e contribuindo decisivamente para a formação da pessoa. É óbvio que tais evidências corroboram com o maior prestígio da música entre as atividades humanas, e desse modo poderiam se tornar importante instrumento de ação política para os órgãos representantes da classe. O músico deve entender o papel da cultura. Saber porque exerce sua função na sociedade é essencial para um agir conscientemente justificado. Precisa informar-se sobre normas que regulamentam o exercício da profissão, o mercado de trabalho, o conceito de propriedade intelectual, os direitos autorais e conexos, os contratos e a montagem de espetáculos. Por isso, logo que passei a lecionar na Universidade, introduzi a disciplina “Legislação e Produção Musical” nos cursos de bacharelado e licenciatura em música. É importante ressaltar que nada disso existia nos cursos de música. Mais tarte na trilha do pensamento de T. Adorno e F. Guattari, propus a adoção e redigi a primeira ementa da disciplina “Música e Indústria Cultural”, onde se enfoca a era industrial e pós-industrial, a nova mídia digital, a internet, a produção e divulgação de áudios na nova dinâmica comercial, recursos de manipulação da consciência e ocupação do espaço subjetivo. No meu contato com os alunos, eu costumo provocadoramente alfinetá-los, dizendo que o músico que desconhece as razões sociais de seu ofício não passa de um esplêndido soprador de canudos. A respeito do Maestro José Siqueira, tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente e o considero o maior líder que a categoria dos músicos já teve no Brasil. Formou-se advogado, redigiu a lei que regulamenta o exercício da profissão, fundou a Ordem dos Músicos do Brasil, de cuja presidência foi afastado pelo golpe militar. Criou a Orquestra Sinfônica do Rio de Janeiro, a Orquestra de Câmara do Brasil e muitas outras instituições. Manifestou sempre raro tirocínio e uma visão abrangente face à realidade musical brasileira. Ainda jovem atuou como regente de banda no interior da Paraíba, de onde trouxe sua sensibilidade popular. Deixou extensa obra musical, e escreveu trabalhos teóricos sobre a música nordestina.
Regente Julio Moretzsohn, Hélio Sena e a compositora e regente Cláudia Alvarenga no lançamento do livro Aranjos e Composições
Prestes Filho: O espaço para a Música Contemporânea no Brasil está reduzido. São poucos patrocínios que a iniciativa privada disponibiliza e as políticas públicas estão cada vez mais limitadas. Quais perspectivas para os próximos anos?
Hélio Sena: Para aqueles que dão aulas em universidades, há tempo para estudar, para produzir, e também boas oportunidades para publicações e gravações, desde que queiram trabalhar. Não é tudo, mas é muito. Para os demais a situação vai continuar como você acaba de descrever: pouco dinheiro, poucos projetos, independentemente de quem ocupe o governo. Cada um continuará contando com suas próprias forças, na medida de seu próprio entusiasmo. Vale observar que alguns compositores de música de concerto conseguem até ganhar dinheiro atendendo encomendas, e produzindo trilhas para comerciais, documentários e filmes. Porém fico surpreso com a ideia de que entre eles existe quem acha bonito não ter público, cultiva o hermetismo, e considera que o isolamento e o convívio exclusivo com os “iniciados” é sinônimo de prestígio. Sabemos que é da natureza de qualquer arte expor-se à apreciação. Com temática hermética e linguagem hermética é natural que tal arte também seja hermética ao financiamento e ao patrocínio.
Prestes Filho: Quais são as orquestras brasileiras que você admira como compositor? Quais são os maestros que mais tem intimidade com sua obra?
Hélio Sena: A meu juízo a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo tem apresentado bom nível nas interpretações e flexibilidade de atuação. Vêm surgindo novas orquestras nas capitais dos estados e em cidades grandes do interior, mas só ouvi algumas. Guardo excelente impressão do trabalho do maestro Cláudio Cohen à frente da Orquestra Sinfônica de Brasília. Sinto falta no Brasil de conjuntos orquestrais menores de caráter experimental, identitário, regional ou alternativo, a exemplo da Orquestra Armorial, que infelizmente não teve prosseguimento. Ocasionalmente escrevo música instrumental, porém tenho minha atenção prioritariamente voltada para os conjuntos corais, motivado por sua maior difusão. Nessa área, têm intimidade com minha obra os regentes Júlio Moretzsohn, Sergio Menezes, Paulo Dunshe, Alexandre Luiz e muitos outros. Segundo fui informado, a Escola Portátil de Choro, no Rio de Janeiro, batizou com meu nome seu conjunto coral mais avançado. Agradeço de coração a homenagem.
Compositor Hélio Sena
Prestes Filho: Como professor, você confirma que no Brasil está surgindo uma nova geração de compositores? Quem seriam eles? Entre estes, existem seus discípulos?
Hélio Sena: Nas três últimas décadas, algumas condições objetivas se tornaram mais favoráveis aos compositores de música de concerto. São elas: 1 – o surgimento de novas orquestras; 2 – a criação de cursos de arte em algumas universidades; 3 – a revolução digital, que barateou os custos e provocou a difusão dos estúdios domésticos; 4 – a oportunidade para trilhas sonoras com a expansão da produção de filmes de dramaturgia, documentários e anúncios comerciais; 5 – incentivos fiscais, atualmente desativados pela covid e pelo desinteresse do governo. É interessante observar uma tendência nova. Algumas orquestras dos estados estão apresentando transcrições de compositores populares. É um movimento forte que talvez tenda a atrair alguns compositores de música de concerto para uma linguagem mais acessível ao público. Está surgindo uma nova geração de compositores, sim. Entre os nomes eu citaria Cláudia Alvarenga e Mario Ferraro, que passaram por mim e naturalmente seguem sua linha própria de criação. Mas não são só os compositores de música de concerto que importam, entre meus alunos há também um número considerável de compositores populares, cantores, instrumentistas, regentes de coros e de bandas. A todos eu procurei passar, com palavras e exemplos, a firme convicção da importância da música para a vida humana. Ela faz parte da cultura de todos os povos. Nós podemos alimentar nosso espírito com o culto da beleza, da verdade e do bem, em contato com as obras imortais dos grandes compositores. Isso é importante. Mas a música atua nos mais diferentes níveis e hoje acompanha, no celular de cada um, o passo a passo de milhões de pessoas. Já antes do amanhecer, nos rincões remotos do país, ela segue de perto a trabalhadora e o trabalhador rural a caminho de sua labuta diária, e também no celular ela fica em casa amenizando a vida doméstica.
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"A canção é importante. É a canção preferida que penetra no íntimo dos sentimentos e ajuda a suportar a dor da separação. No coração, onde habita solidão e tédio, ela desperta imagens aconchegantes. No fracasso ou na exaustão, uma melodia traz fôlego jovem e renova as energias. Na folga para o almoço a trabalhadora e o trabalhador não abrem mão de seu fone de ouvido, pois tem no sanfoneiro seu companheiro certo. O sanfoneiro é muito importante no retorno do trabalho, pois é ele que acalenta o corpo cansado e afasta por um momento as preocupações e encargos. É muito importante o sanfoneiro no fim de semana, quando alegra os encontros e faculta no forró a aproximação dos namorados. É aquela sanfona despretensiosa que traz para o peito o esplendor da beleza e a crença num futuro melhor. Por tudo isso, as pessoas consideram a música parte de sua vida e dedicam respeito e carinho a seus músicos." |
Bela prova do que digo pode ser vista no YouTube, sob o título “Dominguinhos encontra vaqueiros.” O vídeo começa com uma rodovia deserta, numa paisagem áspera e seca do sertão nordestino. O sanfoneiro Dominguinhos, viajando de caminhão, encontrou por acaso um grupo de vaqueiros, que vinham de uma tradicional “Missa de Vaqueiro”. Um deles o reconheceu e perguntou: “Cadê a sanfona?”. E logo começaram a prestar-lhe uma homenagem, cantando alternadamente para ele versos improvisados, que em resumo diziam: “Luiz Gonzaga acabou, poeta do nosso sertão, mas ficou Dominguinhos pra tocar o seu baião.” Aí o músico juntou sua sanfona ao improviso dos vaqueiros com harmonias do modo mixolídio. Foi então que a cena se transfigurou num momento de rara beleza. Sob o céu nordestino, a paisagem rústica do sertão emoldurava o grupo de vaqueiros montados nos seus cavalos. Aqueles homens marcados pela rudeza da terra, com feições de uma beleza agreste, sua tez tostada e seus chapéus de coro, uniam-se ao sanfoneiro criando juntos um poema musical de perfeita unidade. Todos irmanados por sua música, seu canto, sua alma. Terminada a cantoria o sanfoneiro lhes brindou com o requinte de sua arte, o toque delicioso de um forró. E os vaqueiros se despediram dele lançando pelos ares um coral de berrantes, como trompas de ovação. - “Fiquem com Deus!” A paisagem, os personagens, a música, tudo contribuiu para fazer desse encontro um momento mágico da música brasileira, pleno de beleza e significado. Aquele instante de poderosa e perfeita identidade entre a terra, o homem e sua arte eram de fato um culto espiritual de exaltação à vida e revelava toda a sabedoria do preceito do poeta Fernando Brandt: “Todo artista tem de ir aonde o povo está”.
Compositor Hélio Sena, Moscou, URSS, 1965
Entrevista realizada por LUIZ CARLOS PRESTES FILHO – Cineasta, formado em Direção e Roteiro de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); é autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2015).
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