Compositora Lilian Nakahodo

Compositora Lilian Nakahodo
Compositora Lilian Nakahodo

Série Compositoras e Compositores do Brasil

     Série   Compositoras   e   Compositores   do   Brasil     

jornal "CATETEAR"

Por Luiz Carlos Prestes Filho

Compositora Lilian Nakahodo: "O diálogo interartes existe há tempos, e é uma das vocações da música contemporânea - e digo "contemporânea" não num sentido de gênero ou escola musical, mas de interação e impacto na atualidade. É um caminho sem volta que a pandemia acelerou, essa de pensarmos a música atrelada a um contexto audiovisual e dependente da tecnologia de transmissão, mas acho que é um caminho inclusivo, pois  sempre haverá espaço para uma expressão mais "pura" da arte musical, voltada para espaços e perspectivas de escuta tradicionais, como os concertos de música clássica ou mesmo, a audição de um álbum digital."

Em entrevista exclusiva para o jornal Catetear Lilian Nakahodo afirmou: "Interpretar outros compositores, quando se tem um olhar na criação, é sempre uma oportunidade para aprender e experimentar outras poéticas, e quem sabe, absorver, na prática composicional, um pouco da essência material ou conceitual das músicas estudadas. Nesse âmbito, tive mais afinidade com as sonoridades modernas ou "exóticas", como as que ouvimos nos Mikrokosmos de Bartok, nos prelúdios de Debussy, ou na proposta repetitiva das Vexations de Satie. O John Cage, em especial, me inspira muito com suas indagações estéticas e um pensamento voltado para a escuta mundana, e o piano preparado é uma grande paixão desde o primeiro contato com as  Sonatas e Interlúdios." A compositora destacou : "Existem algumas áreas musicais em que, tradicionalmente, as mulheres estão mais presentes. Mas na composição, assim como na produção e outras áreas mais técnicas, ainda há muito trabalho a se fazer. De uns anos pra cá, houve uma ampliação sensível nas discussões sobre representatividade, e reflexo disso eu pude perceber nas movimentações ao meu redor. Até alguns anos atrás, quase todo meu network musical era masculino, havia pouquíssimas instrumentistas próximas."

Luiz Carlos Prestes Filho: Música de Concerto, Música Erudita ou Música Clássica?

Lilian Nakahodo: Prefiro "música de concerto", porque contextualiza um tipo de repertório por uma perspectiva espacial, uma política de escuta.

Compositora Lilian Nakahodo - Concerto Cage

Luiz Carlos Prestes Filho: Música Eletrônica, a Música Eletroacústica ou Música Acusmática?

Lilian Nakahodo: Se estamos falando de preferência, fica difícil, porque considero a eletrônica e a eletroacústica / acusmática gêneros distintos hoje, com práticas de composição e escuta distintas. Seria como optar entre o blues, o rock e o jazz, cada um com sua evolução e timeline, mas com influências mútuas e paletas "flexíveis", gerando experiências diferentes.

Compositora Lilian Nakahodo, 1985

Luiz Carlos Prestes Filho: Seu primeiro instrumento foi o piano. Como este instrumento influenciou a sua trajetória e obra? Nos passos iniciais, aos 10 anos, foi importante a referência dos discos do Richard Clayderman que seu pai ouvia? Por que você considera que sua formação musical se deu somente aos 23 anos, quando estudava na Faculdade de Turismo de Curitiba? Conte um pouco sobre a importância da pianista Vera Di Domênico na sua formação.

Lilian Nakahodo: O piano, até onde lembro, é o primeiro som musical que me afetou. Teve uma intervenção do meu pai, que até hoje, gosta e ouve o tempo todo um tipo de música instrumental popular, dessas tipo Richard Clayderman. Minha infância teve muito som de piano por causa dos discos que ele ouvia, e meus irmãos, mais velhos, que estudavam no piano de casa. A primeira música que eu aprendi a tocar foi a "Ballade pour Adeline", porque eu ouvia o Richard Clayderman tocando e achava lindo... Claro que essas referências estéticas ficaram trancadas num baú secreto por muito tempo, mas é como você comentou, numa conversa que tivemos no whatsapp, "o chato da infância penetra na gente, permeia nossa carne, nosso sangue", e às vezes, quando estou compondo algo, eu me pego pensando, putz, será que está muito Claydermaniano?!

"Muitas músicas minhas tem um quê meio melancólico, às vezes naif, que eu acho que vêm dessas vivências de infância. Apesar de gostar muito, eu nunca levei o piano "à sério" até conhecer a Vera Di Domênico. Porque, na infância, eu basicamente tocava de ouvido, ficava tirando músicas, tive algumas aulas mas logo parei. Resolvi voltar a estudar piano quando já estava em Curitiba cursando bacharelado em Turismo, porque tinha uma escola de música ao lado do prédio da faculdade. Era piano popular, aí aprendi a ler cifras, e um novo mundo sonoro se abriu pra mim. As peças começaram a se encaixar quando comecei a entender harmonia, e minhas brincadeiras de tirar música "de ouvido" da infância refletiram num caminho mais fácil e significativo para tocar o que eu quisesse, inclusive com outras pessoas, o que era um desejo que sempre tive."

Logo larguei as aulas e aos 20, entrei pra uma banda chamada Obá, um grupo com brasileiros, caboverdianos e um moçambicano, que misturava reggae com funaná (ritmo de Cabo Verde), português com crioulo. Daí pra cá, não parei mais de tocar em bandas de diversos gêneros e me aperfeiçoar no popular por meio de oficinas de música, grupos de estudo, material que a gente trocava entre amigos. Em 2003, conheci a Vera Di Domênico, quando, finalmente, senti a necessidade de uma orientação mais técnica e organizada, aos 23 anos. Acabei encontrando não apenas uma excelente educadora como uma mestra e grande amiga, que, além do embasamento técnico, me introduziu ao universo pianístico de concerto de um jeito muito empolgante e amoroso, sensível às frustrações que me acometiam como estudante tardia do instrumento. A Vera também foi impactante na minha carreira artística, dirigindo o primeiro projeto profissional em que atuei como pianista de concerto.

Grace Torres e Lilian Nakahodo

Junto com a pianista Grace Torres, gravamos ao vivo em 2011, a integral das "Sonatas e Interlúdios para Piano Preparado", do John Cage, com concerto de lançamento na Alemanha e diversas ações de continuidade até 2016. Desde 2018, nós três compartilhamos o desenvolvimento e a produção de projetos com o Coletivo PianoVero, envolvendo dezenas de pianistas profissionais e amadores em repertórios pouco executados e montagens contemporâneas. Produzimos, em 2019 por exemplo, 24 horas de performance ininterrupta da obra Vexations, do Eric Satie, num formato de instalação sonora dentro da tradicional Oficina de Música de Curitiba. E no final de 2020, produzimos dois dias de concerto online sobre a obra do guru armênio George Gurdjieff com o pianista e compositor ucraniano Thomas De Hartmann, com a participação de 28 pianistas de 7 países.

Compositora Lilian Nakahodo em Campo Grande com Tomi Nakao (avó), Kame Nakao (bisavó), Tokuei Nakao (avô), pais e irmãos, 1985

Luiz Carlos Prestes Filho: Você nasceu em Piracicaba, Estado de São Paulo. Tem origem familiar japonesa. Mas você diz que a matriz brasileira é a mais forte? Mas você realizou uma série de shows chamado “Sons Nikkei”. A música aconteceu para você nessa confluência de culturas e saberes? Você poderia contar para os leitores o que significa para você musicalmente – por parte de mãe e por parte de pai – ser de origem Okinawa?

Lilian Nakahodo: Piracicaba é um pólo cultural regional e tem uma importante escola de música fundada pelo maestro Ernst Mahle, mas confesso que não tive contato ou interesse por esse universo na época em que morava lá. Tampouco tive muito contato com outros nikkeis em Piracicaba. Por outro lado, por viver em uma cidade com poucos nikkeis e ter estudado em uma escola pública, pude mergulhar em uma realidade cultural e social diferente da minha, que me proporcionou uma diversidade de convivências.  Meus pais sempre valorizaram a liberdade das nossas escolhas e nos incentivaram a ter novas experiências, então as atividades extra-curriculares em Piracicaba também eram bem diversificadas. Talvez essa variedade de convivências e experiências, de alguma forma, provocasse mais inquietações quanto à minha identidade nipo brasileira. A oportunidade de morar fora - primeiro, num intercâmbio aos 16 para a Austrália, e depois como bolsista aos 21, em Okinawa - me ajudou a perceber a força da influência ancestral, e provocou uma conexão que eu nunca tinha sentido antes com a cultura brasileira. E a música teve um papel muito importante nesse processo - por meio dela, quebramos barreiras culturais e linguísticas, transmitimos sensações, acolhemos influências e histórias diversas. O encanto pelos ritmos, em especial os de matriz africana, surgiu nesse processo de conexão com a cultura brasileira. Ter conhecido o trabalho musical e formativo do Letieres Leite, da Orquestra Rumpilezz, intensificou esse fascínio. E desde que comecei a me profissionalizar, os ritmos de matriz africana me acompanham de alguma forma.

Sons Nikkei - Show

O "Sons Nikkei" é um dos projetos mais tocantes que participo. Foi criado pelo João Egashira, músico de Curitiba, com a proposta de fundir influências e sonoridades brasileiras e nipônicas, com a performance de músicos nikkei. O trio de base é formado pelo João Egashira (violão), por mim (piano) e pela Saemi Murakami (taikos, fuê e shakuhachi), e assim realizamos uma série de shows com composições nossas, músicas dos convidados, e arranjos que misturavam o cancioneiro e o imaginário sonoro dos dois países, num processo de ensaios e criação carregado de trocas de referências e experiências de família entre nós, músicos de três gerações e níveis de "niponicidade" diferentes. Nunca fui muito ligada à música japonesa, apesar de crescer vendo meu avô paterno tocar e fabricar sanshin, um instrumento de cordas tradicional de Okinawa. Com o Sons Nikkei, pude, de alguma forma, celebrar essa influência e apreciar uma vivência que eu achava meio deslocada na juventude.

Compositora Lilian Nakahodo com João Egashira, Yuzo Akahori, Fernanda Takai, Saemi Mukami, Naomi Kumamoto e Arthur Endo - Projeto "Sons Nikkei"

Luiz Carlos Prestes Filho: Você tem uma expressiva trajetória como musicista. Sua participação em recitais e concertos executando obras de John Cage, Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, Bela Bartok, Bach, Scriabin e Schumann, entre outros, influenciou sua linguagem? Por outro lado, simultaneamente, você atuou nas mesmas épocas nas áreas de produção, masterização e direção musical. Como é combinar atividades tão diferentes e intensas? Como você consegue manter o foco na composição?

Lilian Nakahodo: Interpretar outros compositores, quando se tem um olhar na criação, é sempre uma oportunidade para aprender e experimentar outras poéticas, e quem sabe, absorver, na prática composicional, um pouco da essência material ou conceitual das músicas estudadas. Nesse âmbito, tive mais afinidade com as sonoridades modernas ou "exóticas", como as que ouvimos nos Mikrokosmos de Bartok, nos prelúdios de Debussy, ou na proposta repetitiva das Vexations de Satie. O John Cage, em especial, me inspira muito com suas indagações estéticas e um pensamento voltado para a escuta mundana, e o piano preparado é uma grande paixão desde o primeiro contato com as  Sonatas e Interlúdios. Ele também elevou as percussões e os ruídos ao status de matéria musical, como já tinha feito com os "silêncios", dentre outras ideias que transformaram a música do século XX.

"A produção musical caminha junto com a composição, a interpretação e a experimentação. Assim, qualquer elemento pode se tornar matéria prima. Meus trabalhos com edição de som demandam um mindset diferente, pois envolvem mais automatismos técnicos e um foco na narrativa audiovisual, sendo bem pontuais os momentos em que posso manipular o som de forma mais composicional. Os prazos e demandas acabam definindo meu foco de trabalho e por isso, uma produção mais autoral acaba ficando em segundo plano. O jeito é encarar cada projeto como uma oportunidade para escutar melhor, testar ideias, perceber as limitações, conhecer novas referências, enfrentar as fraquezas, aprender a ser flexível e praticar o desapego. Tudo isso é aproveitável, mais tarde, em qualquer tipo de projeto. Mas atuar em várias frentes, às vezes, me causa uma certa ansiedade em relação ao desenvolvimento de uma carreira, quando penso que poderia ser mais produtiva se tivesse uma trajetória mais retilínea. E um efeito colateral disso é não saber definir um nicho de mercado para o meu trabalho..."

Luiz Carlos Prestes Filho: Já que estamos falando de matrizes étnicas, você poderia contar sobre a importância de no meio de sua vasta produção musical, encontrarmos as obras “Macumba” e “Oxalá”? Afinal são obras diferentes daquelas denominadas “Fraturas Zen” e “Jeholu 3 Haikais para piano Preparado”. Sua participação na criação da banda “Obá” de afroreggae abriu seus horizontes e percepções? Como foi juntar Raijin, lendária criatura da mitologia japonesa que representa o trovão, e Xangô, o deus dos trovões na Umbanda?

Lilian Nakahodo: Macumba e Oxalá são produções do Tombô, um projeto de live (que até a pandemia, era a performance de instrumentos ao vivo e uma base musical pré programada) com outros músicos, o Alonso Figueiredo (produtor e pianista), André Kloss (baixista, percussionista e ogã) e o Alex Figueiredo (percussionista), baseado na releitura instrumental livre de pontos de terreiro em fusão com a EDM (electronic dance music). Fraturas Zen" é um improviso com samples de discos de vinis remendados - uma intervenção criada pela Tati Cocteau, artista sonora do Rio - para o Festival Chiii de música experimental. No caso dos haikais, gosto da sugestão de uma estrutura, bem como da narrativa que valoriza a contemplação de um instante. Acho que combinam com a minha poética musical. E gosto de provocar diálogos entre elementos inesperados, como em "Jeholu" e a "Dança para Raijin e Xangô". Ambas são peças com piano preparado, que evocam arquétipos percussivos. "Jeholu'' é um solo de piano estruturado em três haikais sobre um dos mitos em torno de Omolu. Esse mito, colhido pelo sociólogo Reginaldo Prandi, conta como Omolu se torna Jeholu ao ser presenteado com um colar de pérolas de Iemanjá. A "Dança para Raijin e Xangô"  é uma peça para piano preparado e taiko, criada com a Saemi Murakami para o projeto Sons Nikkei. A narrativa da peça sugere um duelo imaginário entre dois seres mitológicos relacionados ao poder do trovão, com perspectivas sonoras e culturais diferentes.

Luiz Carlos Prestes Filho: Cite nomes de compositores que foram fundamentais para a sua formação. Cite nomes de compositores de Música Eletroacústica que você acompanha no Brasil e no mundo. Também, algumas obras que tem importância estruturante para sua formação.

Lilian Nakahodo: Comecei a compor numa época em que estava muito envolvida com a música instrumental brasileira, e naturalmente minhas grandes referências eram artistas como Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti. Depois me apaixonei pelo trabalho da Lea Freire, da Silvia Goes, do Arismar do Espírito Santo, do Nenê, toda essa turma que explora e amplia as possibilidades dos ritmos brasileiros com um pé no jazz. Aí veio o Moacir Santos e o Letieres Leite, que pra mim, são os grandes maestros da brasilidade global. Fora do Brasil, gosto dos que conversam com um universo mais pop e world music, como o Ryuichi sakamoto, a Bjork e o Alva Noto. Sobre compositores acusmáticos, fundamentais talvez sejam aqueles que se situam em fronteiras estéticas: o Murray Schafer, a Hildegard Westerkamp e o legado da escola da paisagem sonora canadense; artistas híbridos, como a Janet Cardiff, a Katherine Norman e a Andra McCartney, cujas obras estão muito ligadas a poética de lugares. Tem um livro chamado "The walk book", que documenta algumas obras da Janet Cardiff conhecidas como audio walks, de um jeito bem interessante, como um passeio sonoro. O livro, em si, é uma cartografia audiovisual que me inspirou muito. Todos esses que citei foram referências de peso na minha pesquisa de mestrado, em torno de práticas sonoras contemporâneas que envolvem escutas mediada por fones, caminhadas e sons "concretos". E falando em referências, tem aqueles que foram fundamentais num sentido de formação, alguns deles nesta série de entrevistas. Então gostaria de aproveitar este espaço pra agradecer a oportunidade de estar aqui, mesmo com uma trajetória ainda tímida, ao lado de tantos compositores e compositoras geniais que você entrevistou, como o Rodolfo Coelho e a Roseane Yampolschi, que foram meus professores na graduação em Produção Sonora da UFPR. E agradecer ao meu (des)orientador no mestrado, também na UFPR, o Daniel Quaranta, por ter me conduzido ao universo da arte sonora.

Lilian Nakahodo - Pandemia

Luiz Carlos Prestes Filho: A Música Contemporânea abraça o seu ambiente de trabalho. Você acompanha quais movimentos de Música Contemporânea? Quais poderia destacar? Poderia citar nomes de artistas brasileiros e estrangeiros da atualidade que você acompanha?

Lilian Nakahodo:Tenho acompanhado a cena experimental brasileira como parte da equipe editorial do Tropelia, um hub de música experimental que publica boletins mensais colaborativos, e participado de alguns festivais online. A música experimental permite muitos encontros e gosto de pensar que ela proporciona um espaço inclusivo, onde é possível ter, lado a lado, artistas que lidam com ruído, poesia sonora, acusmática, artes visuais, música pop, EDM, paisagem sonora, live coding, improvisação, música de concerto, e por aí vai. Daí a importância de uma curadoria sensível e a promoção de ações que abracem o público amplo que ela é capaz de afetar, para além da academia. Nesse sentido, queria destacar a atuação de alguns artistas, que também fazem esse papel curatorial e executivo, de produção de festivais, debates e encontros, pensando diversidade e conectando diferentes gerações de artistas, como o Thiago Cury do Festival Música Estranha, a Flávia Goa do F(r)esta, o Juliano Gentili e a Manu do Chiii, o Chico Dub do Novas Frequências e a rede Sonora do NuSom (USP), com a Lilian Campesato, a Valéria Bonafé, a Marina Mapurunga, a Eliana Monteiro, a Vanessa De Michelis, Tide Borges, Mariana Carvalho e tantas outras artistas (USP). Sem contar a atuação dos selos independentes também geridos por artistas experimentais e focados nesse nicho, como o Música Insólita, o Arte Estranha, Música de ruído… Outra cena que dialoga com a da música experimental é a da arte sonora. Aí também temos contribuições importantes, como a do Rui Chaves, que realizou um mapeamento de artistas sonoros no Brasil e criou a plataforma Nendú; a Laura Mello, que organiza o Festival Dystopia.. enfim, são agentes que fortalecem uma rede ainda pouco visível e pulverizada no país. São tantos artistas e trabalhos interessantes que fica até difícil dizer quais, em especial, tenho acompanhado.

Luiz Carlos Prestes Filho: A interseção audiovisual/teatro/música/performance hoje é uma realidade. Em especial, por conta da atual revolução científica e tecnológica que está transformando todas as áreas da cultura. Qual é o impacto da mesma na música contemporânea? Você realizou a performance “Carmela em l’air”; ; a trilha da obra “Vilosidade”, entre muitas outras. Quem acompanha o seu trabalho percebe que para você não existem fronteiras de gênero, de técnica, de meio de expressão. Você escolhe os caminhos ou os caminhos direcionam suas composições?

Lilian Nakahodo: O diálogo interartes existe há tempos, e é uma das vocações da música contemporânea - e digo "contemporânea" não num sentido de gênero ou escola musical, mas de interação e impacto na atualidade. É um caminho sem volta que a pandemia acelerou, essa de pensarmos a música atrelada a um contexto audiovisual e dependente da tecnologia de transmissão, mas acho que é um caminho inclusivo, pois  sempre haverá espaço para uma expressão mais "pura" da arte musical, voltada para espaços e perspectivas de escuta tradicionais, como os concertos de música clássica ou mesmo, a audição de um álbum digital. Todas essas peças que você citou tem abordagens bem distintas e foram criadas para dialogar com uma performance. "Carmela en l'air" é uma peça simples pra piano, meio naif, inspirada por uma coreografia de balé aéreo. "Vilosidade", que depois passou por uma produção fonográfica, é uma performance de dança contemporânea da Lívea Castro que eu sonorizava ao vivo com um improviso  eletroacústico, baseado em sons de pedras e ruídos. Gosto muito de fazer trilhas para dança, e durante a pandemia, foi interessante trabalhar essa linguagem adaptada para o audiovisual, como na trilha do espetáculo "No Mundo de Maria João". Nesses casos de participações em projetos e encomendas, as demandas e visões do artista, bem como o formato final de transmissão, funcionam como primeiro filtro. A narrrativa da performance é um norte para a criação. A partir daí, os caminhos vão se mostrando por meio de experimentações e referências, e se afunilando nas limitações técnicas e operacionais, até chegar num lugar de apoio narrativo.

Luiz Carlos Prestes Filho: Nas suas obras “O Mar, o Martelo e o Vento”, “”, , “Sonhos”, Brumas”, “Distante” e “Lusco-Fusco” percebo uma forma muito pessoal de contar histórias. As narrativas são distintas, os formatos também, mas de uma obra para outra você vai desenvolvendo sua forma própria de falar sonoramente. Qual a importância das palavras para sua criação? Palavras em português e palavras em japonês. Quais diferenças e quais convergências?

Lilian Nakahodo: Elas têm diferentes pesos e medidas, conforme a obra. Palavras são imagens e sugestões, e nesse universo abstrato da criação sonora, especialmente em peças sem letras cantadas, considero como elemento essencial no processo e na recepção. As vezes é o nome que vem primeiro e direciona o caminho da composição, como em "Lusco-fusco", que é uma peça eletroacústica toda sintética, em que eu brinco com imagens e sensações claro-escuro. Já "Fraturas zen" e "Solfejo para manhãs", por exemplo, foram nomes atribuídos após a finalização da composição.

"Em Fraturas, uma brincadeira textual, pois só quem assiste o vídeo até o final percebe que o "zen" é apenas o resultado de uma fragmentação progressiva e aleatória da palavra "armazén", repetida  inúmeras vezes como um disco riscado."

No processo de todas as criações, sempre rabisco palavras para não perder ideias-chave, sensações ou conceitos, gerar coerência interna e entender com o que estou trabalhando de fato, coisas que me ajudam a fazer escolhas e buscar material composicional. Agora, palavras em japonês, só no projeto sons Nikkei, porque apesar de eu ter estudado nihongo e morado em Okinawa por alguns meses, me considero quase leiga no idioma!

Luiz Carlos Prestes Filho: Qual tem sido a contribuição dos compositores brasileiros vivos de música contemporânea para com o desenvolvimento da técnica da escrita musical? Podemos identificar uma proposta brasileira? A nossa música contemporânea não deve nada para a música de qualquer outro país?

Lilian Nakahodo: Sinceramente, não me sinto qualificada para te responder sobre isso pois não acompanho esse universo, que ainda é muito conectado à academia, e tampouco tenho experiência performática ou composicional com escrita contemporânea. Acho que a música contemporânea de concerto ainda é um nicho muito estreito no Brasil, certamente há países com muito mais tradição, organização e interesse em fortalecer essa cena. Como disse ali atrás, em relação à música experimental, há uma produção riquíssima no país, o que precisamos melhorar é a comunicação com um público mais amplo e criar maneiras - seja via fomento público, iniciativas pessoais ou coletivas - de alimentar esse ecossistema. 

Flora Holderbaum, Ricardo Dal Farra, Daniel Quaranta e Lilian Nakahodo - Encontro de Música Eletroacústica, Monaco, 2013

Luiz Carlos Prestes Filho: Qual sua opinião sobre a presença das mulheres em atividades musicais? O número de compositoras na Academia Brasileira de Música (ABM) é muito pequeno. Seria possível uma reflexão sobre este tema?

Lilian Nakahodo: Existem algumas áreas musicais em que, tradicionalmente, as mulheres estão mais presentes. Mas na composição, assim como na produção e outras áreas mais técnicas, ainda há muito trabalho a se fazer. De uns anos pra cá, houve uma ampliação sensível nas discussões sobre representatividade, e reflexo disso eu pude perceber nas movimentações ao meu redor. Até alguns anos atrás, quase todo meu network musical era masculino, havia pouquíssimas instrumentistas próximas. E nos últimos anos esse cenário se inverteu, agora meus projetos musicais têm sido, em grande maioria, com mulheres, tanto instrumentistas como produtoras e compositoras.

Compositora Lilian Nakahodo - Concerto Darmstadt

Muitas dessas parcerias artísticas nasceram da conscientização sobre inclusão feminina em equipes técnica-artísticas. Tive oportunidades porque algumas mulheres se arriscaram em trabalhar com alguém que não conheciam, por questão de princípios. Então, hoje em dia, quando eu vejo festivais ou iniciativas coletivas que só tem participação masculina, eu não vejo um machismo sobressalente, e sim, um network ou uma curadoria limitada e acomodada. Especificamente em relação à composição e produção musical, a desproporção ainda é grande e há muito a ser feito para melhorar esse panorama. Mas é importante citar aqui algumas iniciativas que, no longo prazo, podem impactar de forma construtiva. A atuação da rede Sonora, criada por artistas e pesquisadoras ligadas ao Núcleo de Pesquisas em Sonologia da USP (NuSom), que promove várias ações nesse sentido, é um bom exemplo. Durante a pandemia, participei de um curso maravilhoso de composição oferecido pela Michelle Agnes, que teve a participação de mais de cem mulheres! Parece pouco, mas é muito significativo para uma iniciativa pessoal e sem monetização. Para se ter uma ideia, na minha turma de Produção Sonora - que era praticamente um bacharelado em composição com suporte tecnológico - éramos 3 gurias. E apenas eu segui na área. É necessário mais referências femininas na composição, na produção, nas áreas técnicas, para que esse quadro possa ir evoluindo, por isso a importância de políticas e micropolíticas de representatividade e visibilidade feminina. Refletindo sobre isso, ano passado criei uma playlist no spotify, pela facilidade de acesso e compartilhamento, para quem quiser conhecer o trabalho de compositoras de gêneros contemporâneos, a sound.art.women.

Grace Torres, Vera Di Domenico e lilian Nakahodo durante a realização do projeto "Preparando Curitiba - John Cage, Sonatas e Interlúdios para piano preparado".

Luiz Carlos Prestes Filho: Você entende que o compositor deve participar de associações e sindicatos para encaminhar reivindicações e participar ativamente das lutas populares?

Lilian Nakahodo: A participação em reivindicações de classe nas pautas públicas é importante, mas não deveria ser compulsória por meio de afiliações institucionais. Acredito que a qualidade das ações está diretamente relacionada às pessoas que estão à frente nas entidades, e nem sempre são pessoas com um olhar sensível às demandas mais urgentes, tampouco conseguem atuar com agilidade. Nesse sentido, há conselhos ou grupos informais que podem promover um diálogo mais eficiente e dinâmico entre a esfera pública e os artistas, por meio de mobilizações mediadas pelas redes sociais, por exemplo. Tenho acompanhado ações efetivas promovidas por coletivos, como o Rede Coragem em Curitiba, que nasceu durante a pandemia para atuar sobre as ações emergenciais para a cultura, defendendo demandas do setor da música.

Lilian Nakahodo, Alex Otto, Adriano Elias, Rui Chaves, Janaina Moscal e Laize Guazina durante a caminhada sonora pela Cidade Indústrial, projeto:"Mapa Sonoro de Curitiba"

Luiz Carlos Prestes Filho: O espaço para a Música Contemporânea no Brasil está reduzido. São poucos patrocínios que a iniciativa privada disponibiliza e as políticas públicas estão cada vez mais limitadas. Quais perspectivas para os próximos anos?

Lilian Nakahodo: Tento ser otimista, pois acredito em ciclos e renovação, ação e reação.  Um governo como o nosso, com péssima atuação não só na cultura como em diversas áreas, promove discórdia e preconceito, mas não se sustentará por muito tempo. Porque há uma resposta, os agentes culturais e aqueles que defendem a cultura estão se movimentando e buscando formas de derrubar essas barreiras políticas, escancarando as fraquezas e insatisfações do setor, promovendo discussões. Veremos o resultado disso nas próximas eleições, espero. O incentivo e fomento público é essencial na construção e manutenção de um ecossistema artístico mais periférico, como é a arte contemporânea no Brasil. Mas também acredito em micropolítica, iniciativas de agentes e coletivos que têm a capacidade, a longo prazo, de alterar uma situação.

Lilian Nakahodo:Tento ser otimista, pois acredito em ciclos e renovação, ação e reação.  Um governo como o nosso, com péssima atuação não só na cultura como em diversas áreas, promove discórdia e preconceito, mas não se sustentará por muito tempo. Porque há uma resposta, os agentes culturais e aqueles que defendem a cultura estão se movimentando e buscando formas de derrubar essas barreiras políticas, escancarando as fraquezas e insatisfações do setor, promovendo discussões. Veremos o resultado disso nas próximas eleições, espero. O incentivo e fomento público é essencial na construção e manutenção de um ecossistema artístico mais periférico, como é a arte contemporânea no Brasil. Mas também acredito em micropolítica, iniciativas de agentes e coletivos que têm a capacidade, a longo prazo, de alterar uma situação.

Luiz Carlos Prestes Filho: Está surgindo uma nova geração de compositores? Quem seriam eles? Quais são suas referências contemporâneas?

Lilian Nakahodo: Sem dúvida, vamos ver a atuação de muito mais compositores agora do que em alguns anos atrás. Mais cursos formais de composição surgiram nos últimos anos, e hoje, a tecnologia permite não apenas o acesso a mais ferramentas de desenvolvimento, como referências mais diversificadas e maior visibilidade para pequenos nichos. É uma geração de compositores "multitask", que cresceu com o google e muito a vontade com a exposição virtual, transitando entre um universo de concerto, o underground e o pop com facilidade. Estão ligados ao mundo cotidiano e se relacionam com questões de gênero, sustentabilidade e política com naturalidade, da mesma forma que transgridem questões musicais tradicionais. Acho que um retrato disso é a galera do Quartabê, um quarteto de música instrumental formado pela Joana Queiroz, Maria Beraldo, Mariá Portugal e o Chicão, todos compositores, arranjadores, instrumentistas, com um trabalho autoral experimental genial. Mas tem muitos exemplos, basta olhar o line up de festivais como o Novas Frequências, que teve sua 10ª edição este ano, e tantos outros que estão lançando trabalhos em selos independentes de música experimental, como o Arte Estranha, o Música Insólita, Música de Ruído, dentre outros.

Lilian Nakao Nakahodo com os irmãos Liana Saury e Sidney,

junto com os pais Tuko e Lucia

Autor da entrevista: LUIZ CARLOS PRESTES FILHO: Cineasta, formado em Direção de Filmes Documentários para Televisão e Cinema pelo Instituto Estatal de Cinema da União Soviética; Especialista em Economia da Cultura e Desenvolvimento Econômico Local; Coordenou estudos sobre a contribuição da Cultura para o PIB do Estado do Rio de Janeiro (2002) e sobre as cadeias produtivas da Economia da Música (2005) e do Carnaval (2009); é autor do livro “O Maior Espetáculo da Terra – 30 anos do Sambódromo” (2016).