O Violão de Guerra-Peixe
Gravação da Obra completa para violão do compositor César Guerra-Peixe. Fotografia: Guilherme Bauer
O Violão de Guerra-Peixe
Em entrevista exclusiva para o jornal Catetear On-Line, o violonista e professor Alvaro Henrique conta sobre o seu projeto de valorização da obra para violão do compositor Cesár Guerra-Peixe: "O Guerra-Peixe é respeitado, mas ainda não é unanimidade. A maioria das universidades parece ignorar a existência dele. Nas séries de concerto, idem. Acontece de tempos em tempos algo para homenagear o Guerra-Peixe mas é sempre um 'filho único de mãe solteira', ou seja, uma ação pontual, capitaneada por algum admirador do Guerra-Peixe, feito com muita luta, e que o desgaste ao final foi tamanho que falta estímulo para dar continuidade."
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Luiz Carlos Prestes Filho: Como César Guerra-Peixe surgiu na sua trajetória de violonista e professor?
Alvaro Henrique: Conheci a obra para violão de César Guerra-Peixe no começo da faculdade. Uma das coisas que decidi fazer para aprimorar minha formação era frequentar o máximo de festivais e cursos possível, e numa edição do festival "Dilermando Reis" o professor Clayton Vetromilla, da Universidade Federal do estado do Rio de Janeiro (UniRio), fez uma palestra sobre a obra para violão do Guerra-Peixe. Ali já me encantei, e quando encontrei partituras dele na Livraria Musimed, ia comprando dentro do que minha renda de estudante permitia. Mas só fui estudar a sério a obra dele quando foi organizado um concurso de violão na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) por volta de 2004, e a peça de confronto era a "Sonata para violão". Ali foi a minha porta de entrada para obra dele. Após a "Sonata", fui estudando as outras composições, e desde 2008 faço eventualmente em apresentações tocando todas as obras para violão do Guerra-Peixe. Cheguei a ministrar um curso no Centro Cultural Banco do Nordeste em Fortaleza indo mais a fundo na obra dele, durante uma semana inteira. Tenho estimulado alunos a tocar as peças mais didáticas, mas ainda é um trabalho de formiguinha que está ainda mais para o começo.
Apresentação do violonista e professor Alvaro Henrique
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Falando mais como violonista que como musicólogo, o Guerra-Peixe trouxe paro o violão recursos idiomáticos muito interessantes. O Guerra era um grande orquestrador, e sua habilidade de gerar sonoridades únicas com a orquestra ele adaptou para o violão - chamado por alguns de "orquestra de bolso". Acho que o Guerra-Peixe é um grande exemplo no violão brasileiro e mundial de um hábil orquestrador para o violão, a tal ponto que todo compositor que queira escrever bem para o violão deva conhecer Guerra-Peixe. A obra dele também é muito amigável para os iniciantes. Com pouco tempo de estudo, ainda lidando com questões técnicas básicas, temos ali um repertório com a cara do Brasil na mão dos estudantes. |
As 6 Breves e as 10 Lúdicas deveriam ser tão conhecidas pelos estudantes de violão, especialmente, pelos brasileiros, quanto os 25 Estudos do Matteo Carcassi, para citar uma música que todo violonista estuda em algum momento da trajetória.
Prestes Filho: Guerra-Peixe foi um compositor voltado para o Brasil, sem deixar de ser universal. Como a obra dele é valorizada pelo público, mídia e universidades?
Alvaro Henrique: Infelizmente o Guerra-Peixe ainda é um compositor de nicho. Cabe a nós mudar isso, e certamente ter pela primeira vez disponível para o grande público todas as suas obras para violão é uma contribuição. Ninguém se apaixona pelo homem ou pela mulher que nunca viu nem em foto. Da mesma forma, o público não tem como gostar da música que nunca ouviu e que não tem como ouvir.
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O Guerra-Peixe é respeitado, mas ainda não é unanimidade. Na Escola de Música de Brasília, onde trabalho, antes mesmo de eu começar a trabalhar lá já havia obras dele no currículo oficial do curso de violão erudito. No Bacharelado em Violão na Universidade de São Paulo (USP) já se estuda Guerra-Peixe há décadas. Idem na UniRio. Mas a maioria das universidades parece ignorar a existência dele. Nas séries de concerto, idem. |
Acontece de tempos em tempos algo para homenagear o Guerra-Peixe. Por exemplo, toquei num festival organizado pelo Serviço Social do Comércio do Distrito Federal (SESC-DF) em homenagem a ele, mas é sempre um "filho único de mãe solteira", ou seja, uma ação pontual, capitaneada por algum admirador do Guerra-Peixe, feito com muita luta, e que o desgaste ao final foi tamanho que falta estímulo para dar continuidade. Mas, pra ser honesto, isso pode ser dito de quase todos os compositores brasileiros de música erudita.
Considerado um dos principais compositores brasileiros do século 20, César Guerra-Peixe, compôs importantes obras para violão, as quais infelizmente ainda não receberam a devida atenção por parte dos violonistas. Algumas delas têm, inclusive, grande valor histórico, pois foram as primeiras do Brasil no gênero, como a Suíte para Violão, 1946, na qual utiliza elementos seriais, e Sonata, escrita em 1969. Filho de imigrantes portugueses, Guerra-Peixe nasceu em Petrópolis, Rio de Janeiro, em 18 de março de 1914. Iniciou seus estudos musicais de violão com o pai, aos seis anos. Antes de completar 10, já tocava bandolim, piano, violão e violino. Precocemente, já fazia pequenas viagens por Minas Gerais e Rio de Janeiro para se apresentar em pequenos conjuntos. Aos 11, começou a estudar no Conservatório Santa Cecília, em Petrópolis, onde o talento do garoto já era reconhecido: recebeu medalha de ouro dois anos depois como prêmio de estímulo. Aos 16, já trabalhava como professor de violino dessa instituição. Em 1932, começou a estudar no Instituto Nacional de Música, no Rio de Janeiro, após se aperfeiçoar com Paulina D´Ambrosio. Seis anos depois, escreveu alguns arranjos que foram gravados na Odeon e travou contato com as ideias de Mário de Andrade, por meio do livro Ensaio Sobre a Música Brasileira, que causaram profunda influência em sua estética composicional. Por essa época, estudou matérias teóricas com Newton Pádua e iniciou oficialmente sua fase composicional em 1942. Em 1943 compôs sua primeira obra para violão, o choro Sátira. Entre 1944 e 1949, inaugurou a sua fase dodecafônica, estudando com H.J. Koellreutter e renegando todas as obras realizadas antes de 1945. Durante esse período compôs a primeira obra-prima para violão, a Suíte para Violão, de 1946, na qual busca uma aproximação entre a música popular e a serial. Sua Sinfonia n.1 foi transmitida pela BBC de Londres e, em 1947, recusou convite de Aaron Copland para morar no exterior. Em 1950 iniciou fase nacionalista e viaja ao Recife, onde residiu por três anos, visando coletar material folclórico para suas composições. Ainda neste ano compôs a trilha musical de um dos filmes clássicos dos Estúdios Vera Cruz, Terra é Sempre Terra. Em 1953 passou a morar em São Paulo, onde também faz coleta folclórica e participa de congressos populares, escrevendo também sobre essas investigações artísticas. Um dos resultados é o livro Maracatus do Recife, publicado pela Editora Ricordi, de São Paulo. Ainda na década de 1950 várias de suas músicas foram gravadas e recebeu prêmios como o Roquette Pinto, em 1956. Em 1961, volta ao Rio de Janeiro após o término do contrato com a Rádio Nacional de São Paulo. Funda então, em 1968, a Escola Brasileira de Música, Popular do Museu da Imagem e do Som. Em 1969 compôs Sonata, a primeira do gênero na história do instrumento no Brasil. Com três movimentos, é uma das grandes obras-primas do repertório nacional, infelizmente ainda pouco tocada e gravada. Entre esse ano e o seguinte cria também os 5 Prelúdios, sua obra mais interpretada pelos violonistas. Em 1971, integrou a Academia Brasileira de Música, na qual ocupou cadeira que pertenceu a seu professor, Newton Pádua. Entre 1979 e 1980, criou suas 10 Lúdicas para violão. Em 1981, compôs para violão a série de Breves. Dois anos depois, escreveu o Caderno de Mariza. Por fim, em 1984, criou sua última obra para o instrumento: Peixinhos da Guiné. Até o final da vida, quando morreu em 26 de novembro de 1993, Guerra Peixe continuou a receber diversos prêmios e a ministrar aulas como convidado em escolas e festivais. Entre seus principais alunos podem ser citados Jorge Antunes, José Maria Neves, Guilherme Bauer, Ernâni Aguiar, Capiba e Sivuca. Suas obras foram gravadas por violonistas como Marcus Llerena, Celso Machado, Clayton Vetromilla e Sebastião Tapajós. Violonistas como Flávio Apro, Paulo Pedrassoli e Edelton Gloeden já mantiveram peças do compositor em seus repertórios. Obras para violão: - Sátira (1943); Suite (1946); Ponteado (1966); Sonata (1969); 5 Prelúdios (1969/1970); 10 Lúdicas (1979/1980); Breves (1981); Caderno de Mariza (1983); Peixinhos da Guiné (1984). (texto de Gilson Antunes em https://www.violaobrasileiro.com/dicionario/cesar-guerra-peixe)
Prestes Filho: Quais obras serão gravadas?
Alvaro Henrique: Estou gravando todas as obras para violão solo: as não-publicadas "Suíte para Violão" e "Peixinhos da Guiné". Além das demais composições todas publicadas pela editora Irmãos Vitale: "Caderno de Mariza", "5 Prelúdios", "10 Lúdicas", "6 Breves", e a "Sonata para Violão". A "Sonata" é uma grande obra do repertório brasileiro, pela sua forma, pela complexidade, e pelo marco histórico de ser a primeira sonata para violão de um compositor nacional. Exige um intérprete que no mínimo esteja num curso superior de música, e que já tenha tocado ao menos alguma obra com vários movimentos. Para o ouvinte, é muito gostosa de ouvir, porque tem lirismo, tem energia, tem frevo, tem canção. A "Suite" é uma obra que marca a transição da sua fase vanguardista para a fase nacionalista, então talvez é que mais exija do ouvinte. Para o intérprete, demanda a atenção de um cristal. Nada ali é um detalhe. Na partitura todas as notas tem alguma indicação, e nenhuma delas é gratuita. A nota que está marcada para ser tocada fraca realmente soa muito melhor se for fraca. Essa precisão em seguir o que está escrito não é o padrão do violonismo atual, então demanda mentalmente uma disciplina que nem todo mundo quer ter, mas é algo que uma pessoa que já tocou os "Prelúdios do Villa-Lobos" seria capaz de tocar. As demais composições são de nível fácil pra intermediário. O "Caderno de Mariza" pode ser tocado por estudantes com um ano de violão. As "6 Breves" são pequenas suites com 3 movimentos cada, e alguns dos movimentos podem ser trabalhados no primeiro semestre de violão, com a riqueza de trabalharam musicalmente algum recurso técnico do violão, como ligados, harmônicos, ou arpejos.
Alvaro Henrique
Prestes Filho: Porque decidiu realizar um projeto de benfeitoria para gravar a obra de Guera-Peixe?
Alvaro Henrique: Hesitei muito em fazer algo via financiamento coletivo. Não é algo comum no meu nicho de atuação, e vários dos projetos de financiamento coletivo falharam, alguns que constaram até com o apoio de celebridades que estavam na TV. Sempre tive muita dúvida se o público do Brasil estava pronto para entender que eles podem ser parceiros do projeto dos artistas que admiram.
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Porque o financiamento coletivo não é um "apoio para o artista", é um relacionamento no qual cada apoiador vai ganhar algo exclusivo ao viabilizar uma coisinha para o público em geral. Neste projeto, por exemplo, vamos editar pela primeira vez em partitura uma composição que só tem em manuscrito, com alguns rabiscos naturais do trabalho do compositor, e sem algumas informações que ajudam a tocar a música mais facilmente. Só quem apoiar vai ter isso. Tem outras recompensas como essa, e estou surpreso em, no primeiro dia, já bater a meta necessária para o projeto acontecer. Estamos agora trabalhando buscando uma segunda meta que permite a impressão em CDs físicos. |
Outra coisa boa para o artista é que fazer uma gravação via crowdfunding é uma forma de, logo no primeiro dia de pronta, ela já chega pra quem quer ouvir aquilo. Dá uma certo temor no coração pensar que o primeiro passo no projeto de gravar um CD é liberar algum espaço na garagem, embaixo da cama, etc., para guardar as caixas com CD que vão levar um tempo enorme até chegar na mão das pessoas. Com o financiamento coletivo, o CD só fica na casa da gente para gente assinar a dedicatória e vai para onde precisa chegar: o ouvido do público. Este projeto já estava no meu sonho há um tempo, mas confesso que não era o primeiro da fila. Ele pulou na frente porque fui selecionado para ministrar uma palestra no maior evento de violão clássico das Américas, a Convenção Anual da Guitar Foundation of America, justamente sobre a obra para violão do Guerra-Peixe. Chegar tão longe e só dedilhar uns trechos de algumas músicas do Guerra-Peixe seria um jeito insuficiente de convencer de verdade este público tão seleto que encontrarei lá a incluir Guerra-Peixe no seu repertório, nas suas aulas, ou nas apresentações que eles organizam. Chegar lá com uma gravação pronta, e aquela palestra atiçar a curiosidade da pessoa, que ela confirma ao ouvir a gravação, isso sim é um jeito de difundir a obra do Guerra-Peixe entre organizadores de apresentações, professores, e violonistas. Como já batemos a meta suficiente para lançar ao menos nas plataformas digitais, sei que isso vai acontecer. Com um CD físico na mão, e precisamos de mais algumas contribuições para bater esta meta, aí seria perfeito.
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O violonista Alvaro Henrique considera música como a linguagem da emoção, contribui para as pessoas falarem e ouvirem melhor esta linguagem e a usa para levar ao público emoções e estórias inspiradoras. Suas apresentações incluem vários instrumentos dedilhados cobrindo uma fascinante amplitude de histórias e culturas, de Villa-Lobos, Scarlatti, Giuliani a transcrições de Tchaikovsky, Stravinsky e novas obras. Alvaro Henrique, já se apresentou em 15 países, lançou álbuns na Suíça, Áustria e EUA, com prêmios em concursos do Brasil e Canadá, e atualmente professor de Violão Erudito na Escola de Música de Brasília.