Luiz Paixão - Nódoa

Luiz Paixão - Nódoa

NÓDOA

Por Luiz Paixão

Getúlio levantou-se com dificuldade. A idade avançada já não permitia movimentos ágeis. Emiliano, do jeito que estava continuou, nem olhou de lado. Era como se o outro não existisse. Getúlio, também sem olhar, seguiu seu caminho, arrastando os passos. Não demorou muito Emiliano conferiu o velho relógio de bolso, o banco da praça começava a ficar pequeno.

Ele não achava espaço. Virava pra um lado, virava pro outro. Inquieto. E então, também se levantou, e também com dificuldade e, também arrastando os passos, seguiu na mesma direção. Deviam ser por volta de dez ou dez-e-meia da manhã. Como era de costume iam embora nesse horário, guardando sempre um pequeno intervalo entre a saída de um e do outro. Compartilhavam o mesmo banco de praça e os mesmos raios de sol. Mas eram como estranhos, não que não se conhecessem. Moravam lado a lado, parede-meia, por quase toda a vida. Não se falavam. 

Toda manhã, a mesma rotina. Um chegava, logo depois o outro, raramente chegavam juntos, como que a esperar para não correr o risco de um ter que olhar o outro, e ali ficavam os dois, pelo tempo que fosse, sem palavra sequer, sem um movimento que demonstrasse qualquer interesse em denunciar sua própria presença. Cada um guardando para si os seus segredos, suas culpas, suas mágoas e suas dores. Emiliano e Getúlio, em silêncio, sentados no banco da praça, esperavam o tempo passar e, tendo o tempo passado, iam embora para voltar amanhã. Todos os dias eram iguais. Todas as manhãs. Não guardavam dia santo nem feriado. Nada, talvez, fosse mais sagrado para eles do que sentar naquele banco – Emiliano sempre do lado direito enquanto o lado esquerdo se mantinha reservado a Getúlio. Nunca combinaram essa divisão, apenas aconteceu e se fixou no tempo. Os olhos perdidos no longe eram de Emiliano. Os olhos de Getúlio olhavam mais para o chão, tristenvergonhados – pouco erguia a cabeça. No silêncio que envolvia os dois, havia mais, muito mais que o próprio silêncio, que se alimentava na imensa solidão dos dias. E assim é que se passavam os dias, sem pressa... O tempo apenas fazia cumprir seu fado... Impiedoso!... Inexorável!...

Emiliano olhava os dois em cima da cama. Getúlio e Carmela olhavam Emiliano parado na porta do quarto. Ninguém dizia nada. Getúlio e Carmela, mal cobertos pelo lençol, não tinham o que falar, pois qualquer explicação seria absolutamente desnecessária e ridícula. Emiliano não falava nada talvez por não conseguir fazer a voz sair. E os três ficaram ali, por um breve tempo, que pareceu uma eternidade. Perplexos, os três. Impotentes!

Apenas os olhares cruzaram, talvez na tentativa de buscar um entendimento. Emiliano tomou a decisão e saiu do quarto lentamente. Não olhou para trás. Saiu de casa e foi andando, apenas andando, não tinha forças nem mesmo para pensar em nada. Quando chegou à praça perto de sua casa deixou o corpo cair sobre o banco, exausto. E ali ficou, o peito parecendo querer explodir, o olhar perdido no longe, sem ver nada, congestionado por uma lágrima que se recusava escorrer. Carmela e Getúlio... Carmela, a mulher amada. Getúlio, o amigo fiel de longos anos. Carmela, mais de vinte anos de casamento. Getúlio, quase irmão, de uma vida. Carmela e Getúlio... Emiliano tentava uma explicação. Sua cabeça em redemoinho, revirando tudo. O corpo doía como houvesse apanhado. E o olhar perdido no vazio de sua própria existência... Nem percebeu que Getúlio se aproximava. Só quando Getúlio sentou-se ao seu lado é que percebeu sua presença. Mas não olhou, apenas sabia que era Getúlio, que também não olhou para Emiliano. E os dois ficaram ali... um abismo. Getúlio não falou nada. Emiliano não perguntou nada, talvez esperasse uma palavra qualquer, que não veio. Apenas silêncio. Emiliano com o olhar perdido no longe, Getúlio olhando o chão... E assim continuaram. E o tempo, massacrando o silêncio, insistia em não passar, se arrastava em sua angústia, as horas ganhavam mais minutos, os minutos se enchiam de segundos. Nenhum movimento, só o respirar confirmava a existência dos dois. Eles já não sabiam há quanto tempo estavam ali. Horas, muitas! Emiliano levantou-se com dificuldade e arrastou sua dor, sem olhar para trás. Foi apenas andando... Quando chegou em casa não encontrou Carmela. Olhou em todos os cômodos apenas para confirmar. Entrou no quarto do casal, o lençol estendido, cheirando a lavado, as fronhas dos travesseiros também foram trocadas. Emiliano olhou em torno. Nenhum sinal de traição, o cheiro impregnado do sexo se volatilizou, ficando apenas uma suave fragrância no ar. A brisa que entrava pela janela aberta como que purificava o ambiente. Emiliano abriu o guarda-roupa: nenhuma peça de roupa de Carmela. Nada, em lugar algum, indicava que um dia ela havia morado naquela casa ao lado de Emiliano. Na parede, apenas a marca deixada pelo retrato do casal. Emiliano sentou-se na cama e ficou olhando aquela cicatriz do tempo gravada na parede...

Emiliano nunca mais viu Carmela. Os anos passaram e nem soube notícias dela. Também não procurou. Talvez tenha morrido, é possível, já são tantos anos, ela não era nenhuma mocinha. Ele está com oitenta e quatro, se ainda estiver viva ela está com quase isso...  Todos os dias, quando vai sair, pára na soleira da porta e olha o quarto como se fosse a primeira vez, levanta os olhos para ver a marca deixada pelo quadro do casal na parede em frente à janela, que nunca foi pintada para apagar a cicatriz...

Emiliano estranha a demora. Já passam das oito-e-meia. Não é normal Getúlio atrasar-se tanto. Ontem, parecia que tava querendo gripar, com certeza a gripe montou e deixou ele de cama! Velho gripado não vale nada. É cachecol de lã, chá de limão e coberta quente. O tempo anda meio esquisito mesmo. Faz frio e esquenta, esquenta e faz frio, isso quando não chove. Não tem quem agüente! Novamente confirma no Omega de bolso o tempo de atraso, mais de quarenta minutos. Começa a ficar preocupado... Olha mais uma vez em direção à rua e se alivia, Getúlio vem se arrastando... Parece que está bem. Emiliano finge que não vê quando ele se senta ao lado. Os dois permanecem em silêncio... o tempo passa...

Venha Catetear!