Kismara Pezzati - FEMINA

Kismara Pezzati - FEMINA

A mezzo-soprano Kismara Pezzati e a compositora Silvia Berg apresentam obra em homenagem a Santa Hildegard von Bingen

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Em entrevista exclusiva para Luiz Carlos Prestes Filho a cantora lírica, Kismara Pezzati, em sete idiomas apresenta composições da compositora Silvia Berg. A obra é dividida em duas partes. Traz textos de Hildegard von Bingen e outros de própria autoria. O programa apresentado foi estruturado com o maestro e pianista, André dos Santos. Como o título sugere, o tema é o Feminino. Traz para a cena profunda reflexão sobre o ser feminino. Kismara destaca: "Hildegard é considerada santa pela Igreja Católica, mas vale lembrar que sua santificação só ocorreu em 2012 - e ela nasceu em 1098. Os principais textos responsáveis por esta demora de quase mil anos na santificação foram aqueles de cunho sexual, ainda que não possam ser considerados eróticos, talvez mais adequados como de educação sexual."

SERVIÇO: "FEMINA" - Estreia Mundial

Dia 17 de maio de 2024, 20h - Theatro São Pedro

Endereço: Rua Barra Funda, 161

Barra Funda – São Paulo-SP

Informações: https://feverup.com/m/162701

Kismara Pezzati, Nina Stemme e Malin Hartelius, ópera "Der Rosenkavalier", Bunkamura Hall, Toquio, 2007

 

Por Luiz Carlos Prestes Filho

 

Luiz Carlos Prestes Filho:  Interpretar FEMINA é um desenvolvimento natural da sua trajetória. Voltar a residir no Brasil e resgatar uma personagem que no passado lutou pela plena emancipação da mulher, reflete seu posicionamento político atual?

Kismara Pezzati: Sim, FEMINA é um desabrochar natural, assim como a volta ao meu país.

Kismara: Para mim é mais que um recital de canções, é fruto de muitos anos de pesquisa, de desenvolvimento artístico e pessoal, e por fim de uma longa parceria com Silvia. Portanto, a conexão com este programa, por eu ter trabalhado na criação, direção, pesquisa, roteiro, textos e em suas traduções – automaticamente me leva a uma relação pessoal com ele. Ainda que não seja necessariamente autobiográfico, seria impossível para mim mergulhar neste universo sem me vestir dele. Tudo está interligado - já dizia Hildegard von Bingen há quase mil anos atrás e esta máxima continua atual, assim como todo o seu legado. Porém, Hildegard não levantou ativamente nenhuma bandeira política, nem mesmo do que hoje chamamos feminismo. Ela apenas aspirava por liberdade, justiça, via as pessoas como iguais. E buscava o melhor nelas, sem deixar de apontar quando era o seu pior que aflorava. Neste ponto eu me identifico muito com ela, minha causa é sim pelas mulheres, mas sobretudo pela vida, pela humanidade. Pelo direito de sermos humanos livres, o que para mim significa ir além de sobreviver, ou de simplesmente não morrer. Mas de termos liberdade de pensar, questionar, argumentar. De termos educação e conhecimento suficiente para tomar as melhores decisões para as nossas vidas. De termos opções. Seja para pretos, brancos, indígenas, de qualquer religião, raça ou sexo, em qualquer idade e em qualquer canto deste planeta. Mas não sou ingênua. Tenho consciência da distância de conseguirmos isto tudo, da desigualdade, e do desinteresse de alguns. E do interesse de outros para que isso nunca aconteça. Ainda assim, nesta empreitada me vejo numa luta suave, através da música, da poesia, e de histórias de superação. Não estou dizendo que oposição e manifestação não sejam necessárias, pelo contrário. Apenas que minha forma de contribuição é por meio da inspiração artística – através de palavras, de sons. Sobre a minha visão do tema antes de sair do Brasil, bem, eu era bastante jovem. Contudo, sendo a quarta e última filha depois de três filhos homens, senti na pele o machismo, tanto o velado como o revelado. Ser machista ainda era o normal no meu universo familiar nos anos 80/90.

"Minha mãe (e todas as suas amigas e irmãs) nos educaram nos típicos moldes machistas, afinal elas não conheciam outra coisa, era o mundo delas. Nem sei dizer de onde eu tirava este questionamento, já que não era ventilado. De qualquer forma, neste quesito me sentia bastante solitária entre as mulheres do meu círculo, porque desde a infância eu tinha consciência desta diferenciação imensa entre os direitos das mulheres e dos homens na minha família. Sempre achei isto injusto, vociferando sem resultados, principalmente a partir da adolescência. Mas a maturidade me trouxe paz para lidar com o tema, e a coragem de falar abertamente sobre ele.”

 

Prestes Filho:  Como você vê o programa FEMINA no contexto de toda obra da compositora Silvia Berg? Ela subiu num novo patamar de expressão artística?


Kismara: Eu e Silvia temos em comum a forma como enxergamos a música, o que evoca uma linguagem musical final semelhante, ainda que às vezes por caminhos diferentes. Além de termos uma parceria musical de décadas, passando por diversos níveis do meu entendimento musical, pois a conheci no início da minha trajetória ainda no Brasil, as congruências na nossa maneira de expressão musical sempre foram perceptíveis. Eu acredito que todos os artistas conscientes se tornam melhores a cada obra, não só como artistas em si, mas porque nesta ciência sempre descobrimos algo novo sobre nós mesmos a cada produção, o que agrega na complexidade da obra final. Eu sei que Silvia é uma artista consciente, ainda que sua produção seja muito estável. Ela possui uma digital composicional clara, que a faz reconhecível. É o que todo artista busca.

Kismara - primeiros anos

Prestes Filho: Como foi sua formação profissional? Onde nasceu? Quem foi sua primeira professora?

Kismara: Eu nasci em Curitiba, e minha formação musical veio antes do conservatório, com as experiências familiares de fazer música de forma amadora, todos juntos. Meu universo musical era até então quase que exclusivamente popular. Tanto que quando fiz o teste para o conservatório, foi muito frustrante perceber, depois de alguns meses de curso, que tinha feito teste para o curso “errado”, já que o curso era de Canto Lírico. Como o nome do curso era apenas “Curso de Canto”, eu presumi se tratar do canto do meu universo, o popular. Já antes do conservatório eu comecei a fazer teatro, chegando a entrar na faculdade de Artes Cênicas logo depois da escola. Depois da decepção sobre o lírico no conservatório, fiquei titubeante entre teatro e canto, com uma forte tendência ao teatro. Foi quando descobri a ópera e percebi que não precisava mais decidir entre minhas duas paixões, eu podia ter as duas. Mas demorei anos até tomar a decisão pelo canto lírico. Eu sempre digo que minha relação com a ópera não foi amor à primeira vista. Porém surpreendentemente duradoura, já dura mais de 30 anos. Meus primeiros professores de canto foram Pedro Gória, Denise Sartori e finalmente Neyde Thomas, sob cuja orientação terminei meu Bacharelado em Canto. Depois, ainda no Brasil, estudei com o Luiz Tenaglia, de São Paulo. Foi ele quem me preparou para as provas de mestrado em Berlim, quando havia mais de 400 candidatos para 10 vagas. Uma delas foi minha.

Kismara com sua professora Norma Sharp

"Depois de estudar Performance em Berlim com as professoras Norma Sharp e Julia Varady, o destino me levou para Zurique. Eu estava procurando um mecenas para me apoiar financeiramente na continuação dos meus estudos na Alemanha, pois estava no meu último ano de curso. Só que nesta audição, em Zurique, estava também o então diretor geral do teatro (e eu nem sabia quem era ele). Para encurtar a história, que é bem longa, acabei saindo sem um mecenas da audição, mas com uma vaga na Operastudio da Ópera de Zurique, o que me rendeu mais tarde um contrato como solista da instituição. Assim que tudo começou.

Juventude - Kismara canta acompanhada pelo seu irmão Marcello Pessati

Prestes Filho: Seu pai e sua mãe também trabalham com música? A família tem tradição? Você teve apoio nos primeiros anos de estudo?

Kismara: Não, eu fui a primeira da família a fazer da música uma profissão. Depois de mim veio a próxima geração. Meus pais amavam cantar, e por isso sempre fazíamos saraus espontâneos em casa, chamávamos de “roda de violão” juntando os amigos no fim-de-semana, e quase sempre era eu quem puxava as canções com um dos meus irmãos no violão, às vezes improvisávamos todos juntos em diferentes “vozes”. Este irmão do violão, o Marcello (Ceio, como eu o chamava) vivia tocando violão, e eu sempre do lado dele, mesmo na cozinha de casa enquanto minha mãe terminava o almoço. Ceio também tocava em bares de vez em quando, e além de ser meu irmão mais próximo, também era o mais perto de músico profissional na família (mesmo tendo outra profissão no dia-a-dia). Às vezes ele me levava junto para os bares onde tocava (eu ia escondida dos meus pais, por ainda ser menor de idade). Ah, eu amava cantar com ele! Minha família sempre me apoiou na minha escolha (fora fugir de casa para cantar em bares sendo menor de idade, depois que descobriram foi um escândalo). Depois que decidi pelo Canto Lírico, meus pais iam assistir meus concertos e óperas, e acabaram tomando gosto. Para eles também se abriu um universo desconhecido. Eles se emocionavam na ópera. Foi um período muito rico. Infelizmente, meu irmão violeiro, o Ceio, nos deixou muito cedo. Foi muito difícil para mim, porque eu era ainda praticamente adolescente e ele era minha referência mais forte de família. Sua morte foi um dos empurrões da vida para eu sair do país.

"Eu já trabalhava como professora de canto e técnica vocal para atores desde os 17 anos, mas ganhava pouco. E naquele momento meus pais não tinham condições de financiar meu sonho. Ainda assim, mesmo tendo perdido um filho há pouco tempo, meus pais viram a filha mais nova embarcar para outro continente, sem nunca me pedirem para ficar. Ou voltar. Este foi o maior apoio que eu poderia receber.

A menina Kismara com os pais: Marinha Tereza Vieira Pessatti e Juvenal Pessatti

Prestes Filho: Como você vê o mercado do canto no Brasil? Ele contrasta com o mercado do canto na Europa? Quais similaridades e quais diferenças?

Kismara: O mercado do canto lírico no Brasil possui um potencial imenso. Temos inúmeros teatros com fosso de orquestra desativados, mas o país ainda não descobriu todo o potencial (inclusive financeiro) que uma casa de ópera e de concertos pode trazer, como acontece na Europa. Seja do ponto de vista de diversificação de empregos, de turismo, e mesmo de capital de investimento. Mas também temos de considerar que o gênero nasceu lá, e que os europeus convivem com ele desde os primórdios desta manifestação artística. Essa familiaridade faz uma diferença primordial. Quando eu era criança ia assistir peças de teatro infantil com a escola. As crianças de lá vão também ao teatro infantil, mas a Flauta Mágica faz parte deste repertório, pelo menos nos países de língua alemã, onde convivi mais. Cada país europeu tem um mercado um pouco diferenciado entre si, mas o denominador comum é que a produção de música de concerto lá é bastante presente, estudada e fomentada. Mas ainda assim, não são todos os que se identificam com este universo, mesmo na Europa. Precisamos aceitar e respeitar que nem todos vão gostar do que a gente gosta. O que não deve nos impedir de fazer o possível para dar acessibilidade a todos a este gênero, afinal só podemos dizer que não gostamos de um estilo musical depois de termos tido a oportunidade de escutá-lo. Aqui no Brasil, percebo que o trabalho de campo maior é aproximar os brasileiros em geral à música de concerto, desfazendo esta ideia antiga de que este tipo de música é elitista. Já há muito tempo que não é, só ficou a fama. Mesmo do ponto de vista econômico, para assistir um Rock in Rio ou qualquer artista brasileiro popular muito conhecido, o preço do ingresso é muito maior que ir à ópera ou ao concerto, que às vezes pode custar menos que ir ao cinema. Mas a questão não é essa.

"É que ainda há muitas pessoas que não se sentem identificadas com a música de concerto, não porque não gostam, mas porque desconhecem, e acredito que o pré-conceito muitas vezes as impede de experimentar. Por isso aplaudo todas iniciativas mais que necessárias de dar acesso à população em geral ao estudo da música (inclusive trabalho em uma destas instituições, a EMESP), e de levar cursos de música, produções ou mesmo teatros para onde a maioria não teria acesso de outra forma. Tenho esperanças de que, se continuar assim, em alguns anos o meu argumento cairá por terra, e um contingente muito maior da população já tenha tido acesso a este tipo de conhecimento. Quando as pessoas ousam descobrir novos mundos (como minha família lá trás que tampouco conhecia ópera – incluindo eu!), normalmente se encantam, se emocionam. Música de boa qualidade toca o coração. Mas só pode tocar se for escutada.

 La Pietra del Paragone, estreia na Ópera de Zurique, 2004

Prestes Filho: Quais obras de sua trajetória você destacaria como aquelas que apresentam sua capacidade vocal?

Kismara: É difícil escolher nomes de títulos, porque eu nunca “coube” numa única gaveta. Por muito tempo isso foi um dilema para mim, mas hoje vejo como algo positivo. Meu repertório vai desde música medieval (especialmente Hildegard von Bingen) até esta música contemporânea que está saindo do forno agora e que estrearemos na sexta-feira.
Eu cantei bastante tempo como contralto, a princípio de coloratura com Händel e Rossini (minhas estreias na Europa), depois principalmente no repertório sinfônico de concerto e wagneriano na ópera. 
Foi um caminho bastante lento e pedregoso, mas com o tempo minha tessitura se expandiu incluindo graves e agudos. Quem me auxiliou muito nesta reconstrução vocal foi o ícone Grace Bumbry, a primeira preta a cantar no Festival de Bayreuth, na Alemanha. Ela ficou conhecida como a Venus Preta, e isso que estamos falando dos anos 60. Infelizmente, ela já não está conosco. Hoje, além de continuar podendo cantar repertório de contralto, conquistei também a maleabilidade e a resistência necessária para papéis mais dramáticos, como Azucena, Fricka, Amneris, Dalila.

"Eu costumo dizer que o que eu estou fazendo no momento é o que mais me representa, porque é minha melhor versão. De hoje. Que é melhor que a de ontem, e que vai ser superada pela de amanhã.

Ottone, Händel, estreia europeia em Magdeburg, Alemanha, 2001

Prestes Filho: Quais cantoras da atualidade você acompanha?  Porque?

Kismara: Ah, eu sou fã de várias colegas! Acho inspirador poder admirar o trabalho alheio, poder me alegrar com a conquista alheia. Por exemplo gosto muito da Anita Rachvelishvili. Ela é uma artista que encara o fazer artístico como um lema de vida, e tem a coragem de mostrar suas vulnerabilidades. Eu acredito que precisamos trazer a arte musical de concerto mais próxima às pessoas, como comentei antes, e acho que se temos a coragem de sermos autênticos, podemos colaborar e muito neste objetivo. Afinal, a era das divas só existe para quem ainda não chegou no século XXI. Outra mezzo que admiro muito é a Joyce DiDonato, eu a conheci pessoalmente num recital que deu em Zurique, é uma pessoa formidável, muito pé no chão e generosa ao extremo.

 Kismara Pezzati e Sir Simon Rattle, Diretor artístico da Orquestra Filarmônica de Berlim

"Eu admiro personalidades, não somente vozes. Porque estas duas cantoras têm vozes maravilhosas, obviamente. Mas acredito que a pessoa por trás da voz é que traz a veracidade artística, que cumpre o papel da arte no sentido mais amplo e questionador. Ter voz e técnica é imprescindível, claro. Porém, isso sem o autoconhecimento, sem a coragem de mostrar quem realmente se é, apenas na busca da fama pela fama sem conteúdo, isso nunca vai me fascinar como fã."

Kismara Pezzati e mezzo-soprano estadunidense, Grace Bumry, Viena, 2020

Prestes Filho: FEMINA será executada em sete idiomas. Qual destes você domina como o português? Como foi trabalhar com transliterações? Quem orientou? Você realizou pesquisas?

Kismara: Como o português, domino o alemão e o espanhol. Os próximos da lista são o inglês e o italiano. O francês chega por último na corrida do conhecimento linguístico. Latim nem posso dizer que domino, mas dá para trabalhar bem com traduções. Nos textos das cartas medievais de Hildegard von Bingen, a minha base foi o alemão. Sua língua materna era o alemão antigo, mas ela escrevia em latim pelas exigências da época. Portanto, as primeiras traduções de sua obra às quais tive acesso foram em alemão antigo (Altdeutsch). Ali começou minha pesquisa por considerar ser este o idioma mais próximo de como ela se expressava no dia-a-dia, além de também ser o idioma estrangeiro que eu mais domino - mesmo sendo na linguagem medieval, que difere bastante do alemão contemporâneo. Eu usava estes textos sempre em comparação com o latim. Assim fui lendo várias outras traduções existentes em alemão e mais tarde algumas em inglês até encontrar as palavras que considero mais exatas dentro desta miscelânea linguística. Considero que o que fiz foram traduções. Eu sempre amei idiomas e por isso não foi algo pesado de se fazer, ainda que tenha consumido bastante tempo. Nesta pesquisa linguística não tive uma orientação específica fora dos livros, mas para traduzir do alemão para outros idiomas tive sim um grupo de consultores dos respectivos idiomas maternos que também dominavam o alemão para me auxiliarem nas traduções. Assim nasceram todos os textos de Hildegard. Os seus textos dos cantos em latim são os originais. Já com meus próprios textos o processo foi bem diferente. Eu já começava a escrever o texto no idioma escolhido. Prefiro escrever um texto novo já no original. Principalmente porque eu acho bem mais difícil traduzir um texto poético de idioma para idioma, mantendo a qualidade intrínseca do texto do que escolher um idioma que eu domino e me manter nele, porque assim posso seguir a musicalidade da língua, o pensamento intelectual por trás daquele idioma. E cada um tem o seu, é muito fascinante.

"Depois que os textos estavam prontos, percebi que tinha escolhido intuitivamente o idioma pelo tema, ou vice-versa. Exemplificando no resultado: o texto em espanhol é o mais dramático, o em alemão o mais filosófico, o em inglês o mais etéreo, o em português o mais leve, características estas que identifico com tais idiomas, ainda que não sejam as únicas. O texto em espanhol até tentei traduzir para o português, porque a mensagem é forte e a princípio eu queria ter a certeza de que todos na plateia entendessem tudo. Mas não funcionou. Os textos simplesmente nasceram cada um com sua língua materna.

A Santa Hildegard von Bingen

Prestes Filho: Como é a face de Hildegard von Bingen?  Como era o olhar, gestual, voz dela? Em qual detalhe o espectador e o ouvinte encontrarão a verdade desta mulher que iluminou a humanidade?

Kismara: Hildegard é considerada santa pela Igreja Católica, mas vale lembrar que sua santificação só ocorreu em 2012 - e ela nasceu em 1098... Os principais textos responsáveis por esta demora de quase mil anos na santificação foram seus textos de cunho sexual, ainda que não possam ser considerados eróticos, talvez mais adequados como de educação sexual. O que já era demais para a Igreja, e assim o foi até 2012. Portanto, eu gostaria de poder mostrar a humanidade desta mulher, mais que sua santidade, ainda que esta também faça parte de sua personalidade. Mas a meu ver, sua dor ao perder sua amada Richardis, trazendo um luto que a deixou de cama por dois anos, a faz humana. Sua indignação com a própria Igreja e seu clero, a faz humana. Sua forma irônica de se dirigir ao Rei da Inglaterra para falar de corrupção, a faz humana. Estes momentos de vulnerabilidade, de dor, de raiva, de ironia, me permitem vivenciá-la como uma destas típicas personalidades das quais sou fã.

"Ela foi uma mulher muito à frente do seu tempo, era absurdamente inteligente e sagaz, assegurando o título de primeira profetiza da Igreja antes de abrir a boca para profetizar e criticar. Ela sabia como se proteger num mundo de homens. Portanto, a verdade dela está em sua própria vida e em seu legado, que eu apenas pincelo com parte deste programa. Seu rosto, seu olhar, seu gestual, sua voz estão dentro de cada mulher que sai para trabalhar todos os dias. Com todos os conflitos inerentes do ser mulher na sociedade atual, que são outros dos tempos de Hildegard. Espero que o publico se reconheça nela. E não só as mulheres, mas todos os homens que têm acesso ao seu todo, que inclui o feminino. De certa forma, assim ela continua viva em todos nós.

A cantora lírica Kismara Pezati e a compositora Silvia Berg

Prestes Filho: Dos 10 movimentos musicais você canta cinco. Um destes cinco é de sua autoria, em conjunto com a Silvia Berg.

Kismara: O programa conta com 11 canções ao todo e uma peça para piano solo. Eu canto todos os movimentos musicais, com exceção da peça para piano solo que vai ser tocada pelo maestro e pianista André dos Santos. Destes 11 números de canto, 2 são de Hildegard von Bingen (letra e música), 1 é minha (letra e melodia, com arranjo de Silvia), 8 são de autoria musical de Silvia. Destas 8 canções de Silvia, 4 são com textos de Hildegard, as outras 4 são com meus próprios textos. A parceria da Canção Fantástica, de minha autoria com arranjo estendido de Silvia, aconteceu de forma muito natural. Eu já estava no processo de escrita dos textos para o programa, quando uma noite, num estado de quase dormencia, uma melodia me veio à cabeça, e começou a “gritar” na minha mente. Eu “ouvi” a canção, e para não perder o momento, peguei o telefone e gravei cantarolando no escuro do quarto. Esta canção sem texto compreensível é um presente de sons, onde palavras não importam. Para alguém que escreve textos como eu, isso tem um significado bastante especial. Minha leitura é, neste caso, de entrega do texto ao som, quer dizer, o texto é uma expressão da emoção, seja ela inteligível ou não. No dia seguinte, liguei pra Silvia e contei a história, e perguntei se ela toparia fazer o arranjo. E assim embarcamos mais nesta aventura, a da minha primeira composição.

"Der Ring", Berliner Philharmonie, 2013

Prestes Filho: Tem planejamento de gravação em estúdio musical da obra (do programa)?

Kismara: O desejo de gravação existe sim, e queremos concretizá-lo em breve – para que mais pessoas possam ter acesso a este material, que tem por objetivo inspirar humanos ao FEMININO através da música. Também estamos estudando possibilidades de integrar próximos concertos ao vivo do FEMINA. O que já existe, no entanto, é meu CD solo Hildegard Now & Then, gravado em 2019 pelo selo Drama Musica de Londres, de Gabriella di Laccio. Este foi o meu segundo processo musical com Hildegard, onde fiz a curadoria, além da concepção, pesquisa, escolha das obras e textos. Nesta gravação, para voz e percussão, é que surgiu a ideia dos 7 idiomas pela primeira vez. Novamente numa parceira com Silvia Berg, na primeira parte gravei sete cantos de Hildegard, e na segunda sete textos de Hildegard com música de Silvia. Para o FEMINA, Silvia transcreveu quatro das sete de suas canções para canto e piano, especialmente para este programa.

O escritor e jornalista Luiz Fernando Veríssimo e Kismara, após concerto, 2009

Prestes Filho: Quais planos estruturados para o seu retorno definitivo ao Brasil? Novas parcerias? Novos autores?

Kismara: Sim, planos não faltam. Eu senti muita falta do Brasil, afinal 25 anos de ausência é uma vida (ou várias). Por muito tempo neguei isso até a mim mesma. Mas agora vivendo aqui, recém-chegada, ainda me pego sorrindo caminhando pelas ruas, ou encontrando amigos - quase me beliscando para acreditar na realização e na gratidão que sinto ao ver que realmente mudei minha vida, do jeitinho que eu almejava. Eu costumo sorrir ao dizer que já vivi várias vidas nesta mesma vida. E esta é a mais novinha em folha, que acaba de nascer com muita sede de experiências, de novidades, de acolhida, de vida! Então vamos aos planos estruturados. Desde março deste ano estou à frente da Academia de Ópera do Theatro São Pedro de São Paulo, e o trabalho com os jovens cantores supre uma grande necessidade minha, já sentida há algum tempo, de poder retribuir à sociedade todo o conhecimento adquirido ao longo dos 25 anos de carreira internacional. Além disso, iniciei também este ano um doutorado em musicologia na USP, sob orientação de Silvia Berg, onde continuo a aprofundar minha pesquisa sobre Hildegard von Bingen. Meu lado cantora continua tendo espaço na minha agenda e no meu coração, assim que minha próxima estreia mundial será outra estréia mundial da ópera Jovem Rei de Lucas Galon,em junho próximo num projeto em parceria com a USP de Ribeirão Preto.

"Nesta nova fase, eu também quero dar mais vazão ao meu olhar de escritora e poeta. A escrita foi uma companheira fiel de toda minha existência, até agora maiormente de forma privada. A exceção foi meu primeiro espetáculo solo (em 2017), onde estreei em criação, concepção, roteiro, e direção – fora a interpretação, mais rotineira. Este foi meu primeiro termômetro. O bichinho da criação me mordeu e veio para ficar. Desejo seguir publicando meus textos, sejam eles em forma cantada, lida ou escrita - como contos, poesias, libretos, canções. Tenho contos e centenas de poesias no meu arquivo pessoal, e no momento estou trabalhando no meu segundo libreto, mas sem dúvida o FEMINA tem um papel fundamental neste processo de uma nova forma de expressão artística pública. É, eu nunca me encaixei bem em uma única caixinha. 

Kismara e o tenor Ramón Vargas, apresentação de "Requiem" de Verdi, Neuchatel, Suíça, 2011

Luiz Carlos Prestes Filho é compositor, jornalista, roteirista e diretor de filmes documentários