A bisavó da minha avó

A bisavó da minha avó

A bisavó da minha avó tem suas raízes nos pampas gaúchos...

A BISAVÓ DA MINHA AVÓ

Por Ivan Alves Filho

Um dia, Mãezinha - era assim que nós chamávamos a minha avó paterna lá em casa - narrou a história da bisavó dela e da Guerra dos Farrapos e dos esfarrapados todos. Começa assim. A bisavó da minha avó - que trazia o Espírito Santo no nome - grávida de oito meses, reuniu canoas, tipos valentes e arcabuzes e foi libertar seu homem.

Esse era um peão revolucionário preso em uma fortaleza, por conta da rebelião comandada por Bento Gonçalves, que era estancieiro, nada tinha de trabalhador braçal ou homem do povo. O bisavô da minha avó morreu em combate - ou teria sido sumariamente arcabuzado em sua cela, nunca saberemos ao certo o que houve. Mas Bento fugiu e, para mostrar sua gratidão, apadrinhou ali mesmo na canoa a criança que a senhora Espírito Santo pôs no mundo.

Passo Fundo das Missões. Uma área marcada a ferro e fogo no século XVIII.

O marido dela era originário da entrada da região missioneira, mais precisamente de Passo Fundo das Missões. Uma área marcada a ferro e fogo no século XVIII. Seria também nessa região que Luiz Carlos Prestes daria início à sua célebre marcha guerrilheira, conhecida posteriormente por Coluna Prestes, em 1924. Coisas da área missioneira. Ainda sob o choque da emoção, a bisavó da minha avó chegou a ordenar, no momento do parto realizado na própria canoa, que, se a criança chorasse muito alto, ela deveria ser morta, para não atrair a atenção da soldadesca inimiga. "Se ela chorar, matem!". Era o que as mulheres da família transmitiam a todos nós ao longo dos anos. E que a minha tia Yeda, pouco antes de morrer, recordava com orgulho para mim e para minha irmã Maria Luiza. Escrevi uma vez que a História começa dentro de nossas casas. E até hoje acredito nisso, uma vez que a vida familiar é a preparação para a nossa atuação mais adiante, em uma esfera de corte mais público, ampliado. O que importa é entender como trabalho e casa se entrelaçam.

A Guerra dos Farrapos - 1835

A Guerra dos Farrapos se iniciara em 1835 e a questão dos impostos e da relação do Rio Grande do Sul com o Poder Central, então localizado no Rio de Janeiro, capital do Império, parece ter sido seu grande estopim. Fora isso, a gauchada é uma turma peleadora mesmo. "Uma gente de faca na bota", dizia sempre a Mãezinha. "Não me canso de admirar a calma com que essa gente faz revolução", constatava o botânico e viajante francês Auguste Saint-Hilaire, aí pelo tempo das lutas pela Independência do Brasil. O velho Saint-Hilaire tinha toda razão. E a Mãezinha também, por sinal.

As Províncias, como se dizia à época, queriam um pouco mais de liberdade fiscal. Derrotados de vez aqueles esfarrapados, aí por volta de 1840, a bisavó da minha avó pegou os oito filhos que tinha - incluído aí o último, o nascido na canoa - e veio de carro de boi para o Rio de Janeiro. Foram mais de dois mil quilômetros de viagem, no total. Ela não era gaúcha - o marido sim. Na verdade, Ana do Espírito Santo nascera em Angra dos Reis, no litoral fluminense, no caminho da Estrada Real, e fora dar com os costados no Sul para acompanhar seu irmão, então um jovem padre. Cheguei a ver a reprodução de um retrato a óleo desse padre, em uma publicação histórica sobre Angra dos Reis. Fora um herói da luta farroupilha - e isso eu já li em livros de História do Rio Grande do Sul. Escrevendo uma obra sobre a Conjuração Mineira, intitulada O caminho do alferes Tiradentes, vim a descobrir bem mais tarde que sua família possuía parentesco com ninguém menos do que Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha O Tiradentes. Coisas da Estrada Real.

Capa do livro "O Caminho do alferes Tiradentes"

Ana do Espírito Santo não era gaúcha, conforme ficou dito acima - mas tinha a fibra e a altivez das pessoas de lá. Das mulheres de lá. Seja como for, ao se estabelecer no Rio de Janeiro, a bisavó da minha avó acabou de criar a prole, trabalhando como costureira nas imediações da Igreja da Candelária até bem velhinha. Inaugurou uma tradição de costureiras que chegaria até à minha avó, que, por sua vez, ensinaria à minha mãe a costurar também. E no Rio de Janeiro faleceu. Hoje, seus restos mortais se encontram no cemitério carioca do Caju. Mereceu o descanso. Um dos seus filhos - aquele mesmo da canoa - morreu aos 98 anos e foi um médico muito querido no Rio de Janeiro, trabalhando na campanha da febre amarela e na montagem da Liga contra a Tuberculose. Foi ele quem fez a biópsia de Oswaldo Cruz, atendendo a um pedido feito pelo próprio sanitarista em seu testamento. Em tempo: Oswaldo Cruz considerava João Pinto César - esse o nome do menino da canoa - seu grande mestre. Ele era uma espécie de médico do povo.

Capa da revista ALMANAK - 1929

Já bem velhinho, João César praticamente criou meu pai, até os dez anos de idade. Diziam na família que era amigo pessoal de Machado de Assis e que possuía uma das bibliotecas mais completas da cidade, que o tempo se encarregou de dissolver.

Mas o fato é que, quando a minha avó terminou de narrar a saga da bisavó dela, eu tive a impressão de que o velho Érico Veríssimo adoraria conhecer essa história.

Ivan Alves filho é historiador, autor dos livros: "Memorial dos Palmares", "Brasil 500 Anoa em Documentos" e o "Caminho do AlferesTiradentes"