PRESTES - Segunda Parte - Ato nº7 - Luiz Paixão

PRESTES - Segunda Parte - Ato nº7 - Luiz Paixão

A militante comunista Maria Prestes

PRESTES - ATO nº7

Dramaturgo de Luiz Paixão

ABRE LUZ EM UM APARELHO EM SÃO PAULO. DEZEMBRO DE 1952. MARIA EM CENA. ENTRA JOSÉ DAS NEVES CARREGANDO UMA VALISE

JOSÉ - Ele chegou.

MARIA - Mas logo agora? Olha só o meu estado.

JOSÉ - Ninguém está preocupado com isso.

MARIA - Eu estou. Afinal de contas, é um dirigente importante do Partido.

ENTRAM GIOCONDO DIAS E PRESTES

GIOCONDO - Você o conhece, não?

MARIA - Conheço, claro.

PRESTES - A companheira ainda está trabalhando?

MARIA - Para trabalhar não tem hora. Eu sempre trabalhei em qualquer situação e tempo. Me desculpem por estar desarrumada, mas com as crianças dentro de casa... já estou terminando, camarada...

PRESTES - Pedro. Meu nome é Pedro. Muito prazer, dona Maria. Gostaria de me livrar da poeira da viagem.

MARIA - O seu quarto é por aqui. José, mostre ao seu Pedro onde é.

SAEM JOSÉ E PRESTES. MARIA CERTIFICA SE SAÍRAM MESMO.

MARIA - Mas é o...

Opera Mundi: O resgate secreto de Giocondo Dias

O revolucionário comunista Giocondo Dias

GIOCONDO - Ele mesmo.

MARIA - Não acredito!...

GIOCONDO - Em quê?

MARIA - Que o Partido tenha feito isso.

GIOCONDO - O que, companheira?

MARIA - É uma responsabilidade muito grande que o Partido está colocando em minhas mãos.

GIOCONDO - Uma tarefa das mais importantes.

MARIA - Muito importante. Existem pessoas mais indicadas para essa tarefa.

GIOCONDO - Se o Partido decidiu assim é porque julga a companheira capaz.

MARIA - Mas eu sou muito nova. Tenho apenas 20 anos.

GIOCONDO - A idade não quer dizer nada. Por acaso, a companheira está com medo?

MARIA - Não!... quer dizer, sim!... ou melhor, não!... Estou morrendo de medo. O Partido colocou em minhas mãos a segurança e a vida do comunista mais procurado pela polícia no país.

PRESTES SURGE E ESCUTA O FINAL DA CONVERSA.

PRESTES - A companheira não tem o que temer. Com certeza vai desempenhar sua tarefa muito bem.

Registro de Luiz Carlos Prestes na polícia política

FECHA A LUZ. VOLTA A ABRIR EM PRESTES E MARIA.

PRESTES - Dona Maria.

MARIA - Pois não, Pedro.

PRESTES - Eu gostaria de saber onde estão minhas camisas.

MARIA - Na gaveta.

PRESTES - Estou falando das minhas camisas, pois só encontrei umas camisas novas que não são minhas.

MARIA - São suas, sim. Eu que comprei para você.

PRESTES - E as velhas?

MARIA - Foram para o lixo.

Gráfica clandestina do Partido Comunista Brasileiro (PCB)

PRESTES - Por que?

MARIA - Porque estavam muito velhas.

PRESTES - A senhora não podia fazer isso.

MARIA - Podia, sim. Você é que não pode andar dentro de casa como se fosse um mendigo, com roupas que não se pode nem lavar direito porque desmancham toda.

PRESTES - Dona Maria, a senhora deve ser econômica. Não podemos ficar esbanjando, é muito difícil para o Partido arrecadar esse dinheiro.

MARIA - Eu sei que devo ser econômica, mas...

PRESTES - Há companheiros que chegam mesmo a passar fome para nos ajudar.

MARIA - Pois vou dizer uma coisa, Pedro: eu posso ter errado, mas essa sua falta de preocupação com o bem estar é muito humilhante para quem convive com você.

PRESTES - Dona Maria, a vida clandestina não é nada fácil: não se pode sair de casa, não se pode conversar com as pessoas. A convivência diária dentro de um aparelho é...

MARIA - (INTERROMPE PROPOSITALMENTE) Você não acha que abotoar a camisa até o último botão é coisa de padre?

PRESTES - Andar com a camisa fechada impõe respeito dentro de uma casa de família. É assim que devem se compor as pessoas para manter a ordem.

MARIA - Eu acho muito estranho.

PRESTES - Para mim isso não é nada estranho, desde o colégio militar aprendi usar aquela beca preta presa no pescoço.

MARIA - Mas Pedro, com um calor desses, quando a gente quer mais é tirar a roupa, você fica com tudo fechado?

PRESTES - Não se preocupe. Eu estou bem assim.

MARIA - Pois para mim isso é preconceito contra o corpo. E, a partir de hoje, companheiro Pedro, você vai usar um remédio que comprei, para acabar com essa mania horrível que você tem de ficar arrancando as peles da cutícula.

PRESTES - Isso é vício de velho e vícios de velho não têm cura!

MARIA - Seus dedos estão em carne viva. (ENTREGA O REMÉDIO) É para ser usado quatro vezes ao dia.

MARIA SAI. PRESTES FICA SOZINHO EM CENA, PERPLEXO. A LUZ FECHA NELE. VOLTA A ABRIR EM GIOCONDO, MARIA E PRESTES.

Luiz Carlos Prestes, década de 1950

PRESTES - Companheiro Dias, sua análise do filme O salário do medo não leva em consideração fatores fundamentais. Fica na superfície, não aprofunda. Parece até que o companheiro viu outro filme. Não analisa os interesses de classe, claramente expostos. A relação capital/trabalho não existe em sua análise. Um vacilo imperdoável, companheiro. E isso é muito mau para um dirigente do Partido Comunista. Como ser dirigente do Partido do proletário se relega a segundo plano a luta de classes? Que o companheiro reflita sobre o assunto e exercite sua autocrítica, pois assim, que exemplo poderá dar aos nossos militantes? Veja a análise da companheira Maria: muito mais completa, muito mais substanciada, muito mais correta do ponto de vista político e ideológico. E com um detalhe que enobrece ainda mais o trabalho da companheira: o companheiro dirigente estudou muito mais do que a companheira Maria, que nem completou o ginásio. Parabéns, companheira. A direção do Partido tem muito a aprender com a base.

Cartaz do filme "O Salário do Medo"

ENTREGA O TRABALHO PARA MARIA, OLHA PROFUNDAMENTE PARA ELA, QUE FICA MEIO SEM JEITO. GIOCONDO PERCEBE, SORRI, COMPREENDENDO A RAZÃO DA SEVERA CRÍTICA. A LUZ FECHA NELES.VOLTA A ABRIR. PRESTES CONCENTRADO NUM LIVRO DE PALAVRAS CRUZADAS, MARIA O OBSERVA.

MARIA - Você notou uma coisa, Pedro?

PRESTES - O que?

MARIA - Você não arranca mais a pele dos dedos.

PRESTES - E verdade. As coceiras acabaram.

MARIA - O remédio foi bom.

PRESTES - Eu precisava de uma pessoa como você ao meu lado, que ficasse insistindo para eu me superar.

MARIA - Não fale assim.

PRESTES - Antes de vir para este aparelho, morei com uma família que exagerava em tudo, imaginavam que eu era um santo. Para fazer o almoço ou jantar eram mil voltas que davam para saber do que eu gostava ou deixava de gostar. Tinha dias que eu me sentia tão mal que trancava a porta do quarto para não ver ninguém. Com você é diferente: você não pergunta nada, você faz, não espera ordens e cumpre as obrigações combinadas corretamente.

OS DOIS SE OLHAM. PRESTES VOLTA-SE PARA AS PALAVRAS CRUZADAS.

PRESTES - O que significa “egolatria”?

MARIA - Não sei, companheiro.

PRESTES - Egolatria significa o “eu” das pessoas, o sentimento da própria importância. (VOLTA-SE PARA AS PALAVRAS CRUZADAS. DIZ SEM OLHAR PARA MARIA) Pois é, a gente fica falando sobre os “eus”dos outros e esquece do nosso “eu”. Essas palavras cruzadas tomam um tempo enorme. Bem que poderíamos ficar namorando.

MARIA - O que? Namorar?

PRESTES - (SEM ENCARÁ-LA) Só tem eu e você aqui dentro de casa. O que precisamos mais para namorar? (OLHA PARA ELA FIXAMENTE) Companheira Maria, quer se casar comigo?

MARIA - Casar?

PRESTES - É, casar comigo... Você quer?

MARIA - Companheiro Pedro, eu... Você... Eu sou uma moça muito jovem e inexperiente para ser sua esposa.

PRESTES - Nada disso tem importância, companheira.

MARIA - Você é o dirigente do Partido.

PRESTES - E você é uma militante.

MARIA - Por isso mesmo. O que os companheiros do Comitê Central vão pensar a respeito?

PRESTES - Não estou interessado nisso.

MARIA - Mas eu estou. Vai aparecer gente falando que eu não tive capacidade de me comportar como uma comunista, em vez de cumprir a tarefa de segurança e ordem, envolveu você.

PRESTES - Eu é que me deixei envolver. Você é jovem, Maria, mas isso pouco importa. O amor não tem idade.

MARIA - Pedro, eu não tenho uma formação boa, nunca cursei universidade, não sou intelectual, mal posso ajudá-lo em trabalhos teóricos que você mesmo diz serem imprescindíveis para a luta revolucionária.

PRESTES - Uma mulher intelectualizada, uma mulher que estuda filosofia, traria para mim milhões de problemas.

MARIA - Não sei por que.

PRESTES - Eu tenho as minhas ideias, ela teria as dúvidas dela.

MARIA - Não posso, companheiro.

PRESTES - Por que?

MARIA - Porque não posso, ora. Isso depende de...

PRESTES - Só depende de você.

MARIA - Vou pensar... não sei... quer dizer, não sei o que fazer.

ABRE UM FOCO EM GIOCONDO. ELE DIZ PARA MARIA.

GIOCONDO - Se acalme, companheira.

MARIA - Eu quero ser removida para outro aparelho. Não posso continuar aqui, desviando a atenção do líder máximo do Brasil para outros assuntos que não seja a revolução.

GIOCONDO - A revolução, se acontecer, vai ser feita por seres humanos que amam, têm ciúmes, fazem carinho e formam famílias.

MARIA - Será que você também não entende, Giocondo?

GIOCONDO - O casamento é uma coisa particular de duas pessoas, na qual o Partido não pode se meter.

MARIA - Mas...

GIOCONDO - Entendo sua aflição, companheira. Afinal, o Velho pode ser seu pai. A Anita nasceu em 37 e você em 32. Mas isso não é nada. Se você gosta dele como parece que ele gosta de você... Vocês que decidam. Se precisarem de padrinho, podem contar comigo.

GIOCONDO SAI. MARIA E PRESTES SE OLHAM. APROXIMAM-SE LENTAMENTE. BEIJAM-SE. A LUZ CAI SOBRE OS DOIS. UMA MÚSICA. ABRE LUZ EM PRESTES, GIOCONDO, JOÃO AMAZONAS E ARRUDA CÂMARA

O revolucionáro comunista João Amazonas

PRESTES - Para sermos consequentes na luta contra as posições de direita, temos que fazer uma autocrítica profunda dos nossos erros de esquerda.

AMAZONAS - Quais erros de esquerda, camarada?

PRESTES - Erros que vêm acompanhando e se aprofundando no Partido desde o Manifesto de Agosto.

AMAZONAS - O Manifesto de Agosto foi uma resposta veemente ao momento de crise violenta por que passava o país e o mundo, sob a terrível ameaça do capitalismo.

GIOCONDO - O camarada Amazonas não compreende que o nosso grande erro foi subestimar a massa e nos colocarmos no lugar do povo, como seus únicos e legítimos defensores. E agora precisamos rever toda nossa orientação.

AMAZONAS - Ainda hoje, o manifesto responde às necessidades políticas do país.

PRESTES - Claro que não.

AMAZONAS - Não se pode desprezar a luta armada como alternativa real.

PRESTES - Nessa nova realidade, o Partido “deve estabelecer entendimentos e acordos com todas as forças, correntes de opinião e partidos políticos”.

AMAZONAS - Mais uma vez acordo com a burguesia!?

PRESTES - Mais uma vez lutar para não nos isolarmos.

O revolucionário comunista Diogenes Arruda Câmara

ARRUDA - Cuidado para o camarada não confundir “via pacífica ao socialismo” com “caminho pacífico”.

AMAZONAS - As classes dominantes tornam inviável o caminho pacífico da revolução!

PRESTES - Vocês estão querendo resgatar o que há de mais atrasado em nosso Partido.

AMAZONAS - Não, camarada, o que queremos resgatar são as tradições revolucionárias do nosso Partido.

ARRUDA - Que hoje estão sendo traídas pela maioria direitista e revisionista do Comitê Central.

PRESTES - O que sei, camaradas, é que precisamos mudar tudo!

INVERSÃO DE LUZ. PASSADO.

PRESTES - Giocondo, vamos mudar tudo, que o Arruda sabe de tudo. Um camarada que fala assim do socialismo e da União Soviética é um traidor.

Exemplar do jornal clandestino do Partido Comunista Brasileiro (PCB), 1949

ABRE UM FOCO DO PASSADO EM ARRUDA CÂMARA.

ARRUDA - O que houve camaradas, foi a conversão da ditadura do proletariado em ditadura do partido. Violações da legalidade socialista. A União Soviética se afundou num mar de lama. Essa é a verdade. Stálin já não pode ser mais o “camarada generoso e humano”, mas um “déspota sanguinário”... não mais o “mestre, guia e pai”... 13.000 militantes do PCUS assassinados friamente, inclusive, 80% dos membros do Comitê Central do Partido...

FECHA O FOCO EM ARRUDA.

GIOCONDO - Me sinto como um menino que se perdeu da mãe e não sabe voltar para casa... Não posso acreditar que Stálin tenha feito tudo isso. É ilógico que um homem como ele... E agora o acusam... Ele que sempre esteve certo, que nos orientou, que...

PRESTES - Infelizmente é verdade...  E nós vamos ter que enfrentar essa discussão, que não vai ser fácil. O Partido vai viver a maior crise de toda a sua história...

GIOCONDO - O socialismo internacional vai sofrer um impacto, como nunca antes.

ABRE LUZ GERAL.

ARRUDA - Não temos que mudar nada.

PRESTES - Você foi o que mais ardorosamente defendeu mudanças depois do Relatório Kruchov.

ARRUDA - Foi o camarada Secretário Geral do Partido, que mandou encerrar as discussões sobre o Relatório.

Moeda do V Congresso do PCB, obra do artista Honório Peçanha

PRESTES - Para que as discussões se dessem no Congresso, que é o nosso organismo máximo. E não podia admitir críticas como as que estavam sendo feitas ao Partido e à União Soviética. Era “inadmissível, que a pretexto de livre discussão, jornais feitos com o dinheiro do povo e que sempre - a custa dos maiores sacrifícios - defenderam os interesses do povo, da classe operária e seu Partido de vanguarda, fossem utilizados para veicular ataques à União Soviética, para tentar apresentar como equiparáveis os erros cometidos na luta difícil e duríssima pela construção do socialismo com crimes da burguesia em defesa de seus interesses e privilégios”.

GIOCONDO - Não é que nós não temos que mudar, nós já mudamos, camaradas. O Partido já não é mais o mesmo.

ARRUDA - Isso para mim tem outro nome. Isso para mim é reformismo!

AMAZONAS - Direitismo.

PRESTES - As bases exigem mudanças.

ARRUDA - E quem são as bases para exigir alguma coisa?

PRESTES - As bases, camarada, são o Partido. Ou você pensa que o Partido é você?

ARRUDA - Nós somos a Executiva.

PRESTES - É isso. A Executiva manda e desmanda. E a Executiva não é dona do Partido. O Partido não tem dono. Não podemos ser um bando de caciques e senhores feudais a determinar o que bem entendermos.

ARRUDA - O Partido é tudo, já dizia o camarada Stálin.

PRESTES - O Partido não é tudo. E o camarada Arruda tem mudado muito de opinião. Nos debates em torno do Relatório Khruschov, você era o rei da democracia interna, condenando veementemente os crimes do camarada Stálin. E agora volta a citá-lo?

AMAZONAS - O PCUS está adotando uma linha revisionista. Traindo a revolução. É isso que se vê.

PRESTES - É preciso entender a necessidade da autocrítica, e pelo que vejo os camaradas não estão nem um pouco interessados nela. A democracia interna deve ser um valor e não apenas retórica.

AMAZONAS - Essa sua autocrítica inclui também a mudança de nome do Partido?

GIOCONDO - Essa mudança é uma necessidade legal. Não podemos cometer os mesmos erros de 47. E essa autocrítica não é do camarada Prestes, mas do conjunto partidário.

ARRUDA - O Partido não é mais um partido revolucionário.

Nikita Khruschov no XX congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956, denunciou os crimes cometidos por Josef Stalin

PRESTES - Continuaremos comunistas revolucionários. O que não podemos mais é admitir o culto à personalidade, o mandonismo, o esquerdismo e o sectarismo que nos custou muito caro, no passado recente. Militantes do Partido chegaram mesmo a apanhar de operários... Cometemos erros táticos fundamentais. Em 54 tivemos que sair correndo atrás da massa que acompanhava o enterro de Getúlio, e nós temos responsabilidades no seu suicídio. Não compreendemos de imediato a luta pelo monopólio do petróleo, erramos com o voto nulo em 50. Parece que o nosso Partido tem se primado pelo erro, e agora é preciso acertar, pois vivemos um momento em que nossa atuação será decisiva para os destinos da democracia e do socialismo.

AMAZONAS - Não podemos admitir modificações porque nós somos os melhores.

PRESTES - Muito melhores do que nós deve haver nas bases do Partido. A Declaração de Março foi um grande avanço em nossa linha política, o V Congresso  vai ser a afirmação deste avanço.

Luiz Carlos Prestes e o líder chinês, Mao Tsé-Tung, em viagem clandestina, Pequim, 1959

A LUZ FECHA NELES.

Luiz Paixão é diretor de teatro, dramaturgo, poeta e escritor

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Recomendamos a leitura

Livro: "Prestes com a Palavra" de Dênis de Moraes

Prestes com a palavra – de Dênis de Moraes