O Marido

O Marido

O MARIDO

Por Luiz Paixão

Clarisse deitou-se suavemente ao lado do marido, evitando qualquer movimento brusco. Puxou a coberta à altura dos lábios. Por um ligeiro instante parou imobilizada, os músculos rijos e tensos, sequer um respirar, um movimento sequer, o pensamento quase ausente... Uma fração mínima de tempo que pareceu nunca mais acabar. Finalmente seus olhos abriram e seu olhar perdeu-se nas formas do teto do quarto do casal. Ela não sabia nem mesmo no que pensar. O que fazer, não sabia. No fundo, talvez já soubesse que nada podia fazer.

Vazio imenso. Dor sem fim. De vez em quando olhava de lado, como a certificar-se que o marido estava ainda ali... deitado na mesma cama, no mesmo lado de sempre...  mas era como se não estivesse. E o pensamento novamente viajava por espaços não definidos: as paredes que a cercavam e sufocavam como a se fechar em torno dela, ou quem sabe o lustre e as portas do armário de roupas. Pensar em coisas fúteis. Pensar em nada. Não era justo. Ele não tinha o direito. Depois de tudo que passaram. Depois de tudo que se entregou. Depois de tudo que superou para amá-lo e ficar enfim ao seu lado. Clarisse desvirginou-se mulher nos braços do único homem que conhecera e na cama entregou sua inocência ao marido. Para nenhum outro dirigiu sequer um olhar, tanto amor que guardava em seu coração... Não! Não era justo!

Vazio imenso. Dor sem fim. De vez em quando olhava de lado, como a certificar-se que o marido estava ainda ali... deitado na mesma cama, no mesmo lado de sempre...  mas era como se não estivesse. E o pensamento novamente viajava por espaços não definidos: as paredes que a cercavam e sufocavam como a se fechar em torno dela, ou quem sabe o lustre e as portas do armário de roupas. Pensar em coisas fúteis. Pensar em nada. Não era justo. Ele não tinha o direito. Depois de tudo que passaram. Depois de tudo que se entregou. Depois de tudo que superou para amá-lo e ficar enfim ao seu lado. Clarisse desvirginou-se mulher nos braços do único homem que conhecera e na cama entregou sua inocência ao marido. Para nenhum outro dirigiu sequer um olhar, tanto amor que guardava em seu coração... Não! Não era justo!

Clarisse sentia falta do braço do marido enroscando-a e agasalhando-a e roçando o seu corpo no dela. Também sentia falta do seu respirar quente e úmido em sua nuca. Ele, deitado ali, ao seu lado, era como... E ela, perplexa diante de tudo, segurava para não chorar e chorar e chorar de nunca mais secar as lágrimas. Olhou outra vez para o lado e o que viu foi amor interrompido, amor imenso tornado em nada, sem que pudesse ao menos lutar por ele. Tanto para dizer, tanto para fazer e dividir a dois. E seu grito não encontrava eco. O silêncio não permitia respostas... Nem mesmo perguntas Clarisse sabia formular. O que questionar quando tudo era absolutamente inusitado, quando tudo era particularmente novo e quase impossível de se acreditar?...

A noite era sempre mais longa que o dia. As horas da noite não passavam. Na sala, o relógio de parede gastava uma eternidade até o próximo toque. A monotonia do tic-tac era o único som e companhia para sua solidão a dois. Quantas noites já se passaram? Duas? Três? Nem sabia ao certo. Todas as noites tinham sido iguais: noites de silêncio. Noites de insônia. Noites que não foram feitas para o sonho.

Sem rumo vagava pela casa, vacilante e frágil, trombando aqui e ali, atropelando os poucos móveis existentes, sem saber que direção seguir. Já nem se alimentava. Já nem se cuidava. Já nem se via mulher que aos poucos perdia encantos e prazer. Fugia de si mesma para não confrontar fraquezas. Evitava sempre o quarto do casal, evitava mesmo passar por perto, se recusando entrar no espaço que julgava sagrado, onde agora... Não podia suportar olhar a cama em que dormiram os anos todos. Ali só entrava à noite, quando pegava sua dor e a envolvia num frágil manto de fortaleza e a oferecia como prova de seu amor maior, no altar de sua adoração. Como num ritual se entregava. Num esforço sobre-humano, a tudo superava: superava o medo da solidão, superava-se em saber-se indefesa e sem forças. Só não conseguia superar o amor, pois era o amor que a tudo superava. Era movida pelo amor que olhava de lado e via o homem deitado e ao seu lado deitava-se sem dizer palavras. Ela queria, sim, tocar o marido, abraçar-se com ele, sentir seus corpos unidos, as peles roçando... Ainda que não obtivesse respostas, era isso que queria. Não aguentava mais o silêncio, o abandono.

Sua mão deslizou lentamente sobre o lençol em direção ao corpo do homem. Quando quase as pontas dos dedos encostaram o corpo proibido, paralisou o movimento e refletiu mais uma vez: daria a si mesma o direito arbitrário de tocar aquele homem que tantas e tantas vezes teve em seus braços? Muito mais que direito, se tivesse coragem... Apenas roçar que fosse para sentir-se viva e mais uma vez mulher e, talvez ainda – “Que loucura, meu Deus!” –, amada... por um momento apenas... não mais que isso... Era tão pouco! E, se conseguisse, imaginava, talvez conseguisse até mesmo abraçá-lo e tê-lo junto a si. Que mal haveria? Alimentou-se de coragem e, no momento do toque, involuntariamente sua mão recuou. E, como que tomada subitamente por um pânico, começou a se culpar e a se condenar. Virou-se de costas, com o coração aos pulos e o corpo tremendo, tentava controlar a respiração acelerada. Estava além de suas forças, sua vontade e seus desejos... Era nisso que acreditava: assim deveria continuar, pois assim é que são as coisas... definitivas... irreversíveis...

Quando chegaram, três ou quatro dias antes de hoje – a lembrança já não era tão precisa! –, Clarisse sequer imaginava o que estava por acontecer. Quando passaram todo o dia como outro dia qualquer, Clarisse sabia que tudo seria normal e tranqüilo, como sempre. E o dia transcorreu como sempre, sem novidades ou imprevistos, como sempre. Quando o marido se deitou, Clarisse já estava na cama há um bom tempo, tinha praticamente acabado de fechar o livro e apagar a luz do quarto. Em seu estado de semi-sonolência percebeu o corpo do marido se acomodando e se aconchegando ao seu. Ela permitiu que os corpos se encaixassem e se aquecessem para o frio. Era sempre assim. Ele sempre deitava depois, abraçava o corpo da mulher, ela resmungava qualquer coisa ininteligível, que só ele mesmo entendia como um “boa noite”; ele, por sua vez, não dizia nada, apertava um pouco o seu corpo e beijava-lhe as costas. Os dois dormiam...

Todas as noites eram assim e assim continuaram até que Clarisse percebeu que nem todas as noites eram iguais...

Nesta noite, o marido não dormiu... Nesta noite, Clarisse acordou de madrugada e percebeu que o marido estava mais quieto que o normal... então percebeu também que, nesta noite, ele já não respirava... chamou por seu nome: ele não respondeu... gritou, sacudiu o seu corpo e ele continuava inerte... novamente gritou, novamente sacudiu o seu corpo... só então percebeu que era inútil: se ele não respondia nesta noite, era porque nunca mais responderia... Clarisse estava sozinha... Ninguém para pedir por socorro! Ninguém para escutar seus gritos. Ninguém para amparar seu desespero. Ninguém... Nessa noite só tinha a si mesma e ao marido morto, deitado na cama que sempre partilharam. Esta seria a noite mais longa de sua vida! E se multiplicou...

Nesta noite, o marido não dormiu... Nesta noite, Clarisse acordou de madrugada e percebeu que o marido estava mais quieto que o normal... então percebeu também que, nesta noite, ele já não respirava... chamou por seu nome: ele não respondeu... gritou, sacudiu o seu corpo e ele continuava inerte... novamente gritou, novamente sacudiu o seu corpo... só então percebeu que era inútil: se ele não respondia nesta noite, era porque nunca mais responderia... Clarisse estava sozinha... Ninguém para pedir por socorro! Ninguém para escutar seus gritos. Ninguém para amparar seu desespero. Ninguém... Nessa noite só tinha a si mesma e ao marido morto, deitado na cama que sempre partilharam. Esta seria a noite mais longa de sua vida! E se multiplicou...

Em frente ao espelho as lágrimas não escorriam mais e as cores do viço iam aos poucos tomando sua pele. O rosto foi ganhando brilho, suavemente. Clarisse se olhava no espelho e se via ainda bela. O pálido tornou-se vida. O batom, o blush, o lápis acentuando o olhar e, por fim, um perfume delicado... O cabelo encerrava a cuidadosa toalete. Nada exagerado, que não era seu feitio... nada a mais ou a menos, apenas o essencial para se sentir outra vez mulher, como toda mulher gosta de se sentir...

Superando sua dor, sabendo que não havia outra coisa a fazer senão se entregar, Clarisse virou-se de lado e abraçou o marido, abraçou forte e encostou-se nele... E ali ficou, abraçada e enroscada no corpo frio e inerte, como há três dias não se permitia...

Ali, deitada e abraçada ao marido, Clarisse apenas esperou o tempo passar. E dali não se levantou mais. E ali ficou, guardiã, abraçada e entregue pela vez suprema e derradeira ao homem que amou em todos os momentos dos anos todos que viveram juntos. Seus olhos pesaram-se com o sono das horas... E ali ficaram os dois... Clarisse e o marido... o marido... e também Clarisse...

Luiz Paixão é diretor de teatro, dramaturgo, poeta e escritor

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