A Jornada de discípulo a Mestre: Lee Chung Deh do Oriente ao Sul do Brasil
Lee Chung Deh

Em passagem por Curitiba, Prestes Filho durante as comemorações do Centenário da Coluna Prestes foi apresentado por mim ao Mestre Lee. Estava diante de dois de meus professores. Em determinada marcha que fazíamos pelo centro histórico, Prestes me pediu para tirar uma foto dos dois andando. Dias depois Prestes me fez a seguinte provocação. Ao invés de escrever aquelas suas provocações sobre as políticas culturais, guerra híbrida ou economia da música, porque não escreve um artigo sobre o Mestre? E aqui, com alguns meses de atraso, trago algumas notas sobre uma marcha épica, e de uma vitória silenciosa, da qual somente um autentico Shaolin, taoista e budista, seria capaz de caminhar, causar tanto impacto, sem precisar derrotar qualquer exército.
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Exclusivo para o Catetear Notícias - Manoel J de Souza Neto

Mestre Lee Chung Deh ao centro, entre o aluno Manoel J de Souza Neto e o amigo Luiz Carlos Prestes Filho.
Há histórias que não cabem apenas nas páginas dos livros, mas que se inscrevem no tempo como rios que atravessam continentes. A trajetória do Mestre Lee Chung Deh é uma dessas narrativas — um épico real, que une as montanhas da China, as vilas de Taiwan e os bairros do Brasil, de Liberdade até o Guaíba, numa única linha de destino.
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"Nascido em Toufen, província de Miaoli - Taiwan, em 1951, descendente do povo Hakka, migrantes que ao longo dos séculos aprenderam a sobreviver, resistir e florescer em novas terras, Lee cresceu cercado pela memória de deslocamentos e lutas. Sua família não tinha tradição direta no Kung Fu, mas a disciplina das artes marciais estava presente como parte da cultura cotidiana, na escola, nos rituais comunitários e na própria memória de seu avô, conhecido pelo domínio da bengala como arma. Ainda criança, em um ritual tradicional de escolha simbólica, foi colocado diante dele diversos objetos, mas ele escolheu uma pequena espada. Ele a tomou nas mãos, e com esse gesto, como nas epopeias antigas, o destino revelou sua vocação, como sua família lhe relatou.” |
A década de 1960 trouxe o momento da travessia. A família decidiu deixar Taiwan e vir para o Brasil. Depois de meses de preparação e da travessia de um navio cargueiro que durou cinquenta dias, aportaram em Santos em março de 1966, seguindo direto para São Paulo. Ali, no bairro da Liberdade, Lee cresceu entre japoneses, chineses e brasileiros. Estudou português em escolas comunitárias, enquanto em casa se falava hakkanês, mandarim e japonês. Foi nesse ambiente que conheceu o homem que mudaria sua vida: o Grão-Mestre Chan Kowk Wai, introdutor do Kung Fu no Brasil e guardião da linhagem do Shaolin do Norte. Chan havia chegado ao país em 1960, fundado academias e aberto o caminho para que a arte marcial chinesa se estabelecesse em território brasileiro, aclamado pai do Kung Fu no Brasil.

Ao centro Grão-Mestre Chan, a esquerda na ponta Lee Chung Deh
Lee se tornou discípulo. No terraço do Centro Social Chinês, na rua Conselheiro Furtado, treinava sob a orientação do Grão-Mestre, absorvendo não apenas técnicas, mas uma filosofia de vida. O Kung Fu, ensinava ele, não era apenas combate: era disciplina, respeito, autoconhecimento.
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"O chamado ao desafio viria logo. Em meados da década de 1970, Mestre Chan recebeu o convite para enviar um discípulo ao Sul do Brasil, onde academias buscavam introduzir o Kung Fu, através da Academia Sino Brasileira de Kung Fu. A escolha recaiu sobre Lee Chung Deh, ainda muito jovem, estudante de Educação Física, mas já profundamente dedicado. O mestre hesitou: deixar a família, partir para um território desconhecido, enfrentar sozinho a vida adulta. Mas o conselho de Chan foi decisivo: 'Você vai. É a chance de mudar sua vida'.” |
Assim, Lee partiu para Porto Alegre. Ali, encontrou uma juventude curiosa, disposta a conhecer aquela arte que até então só se via nos filmes de Bruce Lee ou na série de televisão “Kung Fu”, estrelada por David Carradine. Num Brasil ainda sob ditadura militar, onde a rebeldia se manifestava em várias formas, o Kung Fu surgia como disciplina, filosofia e também resistência cultural.

Nos clubes comunitários à beira do Guaíba, em academias modestas, Lee começou a ensinar. Seus alunos, quase da mesma idade, tornaram-se ao mesmo tempo discípulos e amigos. Eles treinavam juntos, divulgavam juntos, enfrentavam juntos os desafios de afirmar uma tradição milenar em terras distantes. Segundo o Mestre, o Kung Fu se espalhou naquela época em razão do Tempo: época em que a cultura chinesa era propagada na TV em seriados e filmes através do cinema, e não existiam muitas atividades como hoje para desviar atenção; espaço: O Sul do Brasil, onde tinham jovens disposto a aprender e terreno não explorado pelas tradições da cultura Shaowlin; Fator Humano: Qualidade de alunos, participativos e que colaboravam com a divulgação e desenvolvimento do Kung Fu.
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"A trajetória de Mestre Lee se assemelha, em muitos aspectos, à “jornada do herói” descrita por Goethe e depois popularizada por Joseph Campbell: o chamado à aventura, a travessia, as provas, a recompensa e o retorno com o elixir. Em cada cidade que percorreu Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, deixou sementes que germinaram em novas gerações de praticantes e professores, que se espalharam pelo Brasil. Seus alunos, como Jorge Jung, João Bertoncelo, Júlio Jacob, Rogério Soares, Rubem Baptista, Edecir Lopez Martins, Luis Augusto Whorm, e tantos outros, tornaram-se herdeiros da tradição, espalhando o Kung Fu pelo Brasil e até pelo exterior. No fundo, pelos estados onde passou todos de uma forma ou outra, são alunos de alunos de alunos do Mestre Lee, após já quase completos 60 anos de Kung Fu na vida do Mestre.” |

Mestre Lee e seu discípulo Mestre Jorge Jung, Porto Alegre começo dos anos 1970
Enquanto muitos buscavam títulos e prestígio, Lee se dedicava aos alunos. “Eu me dediquei mais à pedagogia do que a mim mesmo, sem culpa”, afirmou anos depois. Essa opção moldou sua identidade como mestre: mais do que um lutador, era um educador, alguém que acreditava que o verdadeiro Kung Fu estava em formar seres humanos melhores.
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"A vida de Lee Chung Deh não foi apenas a de um mestre de artes marciais. Em vários momentos, enfrentou pausas, mudanças, crises pessoais e familiares. Em Curitiba, abriu e fechou academias, adaptou-se às exigências da vida. Em São Paulo, cuidou de seu pai idoso até o fim da vida.Nessas pausas, buscou o Budismo e o Taoismo como caminhos de reconciliação. Participou da construção do Templo Amitabha em São Paulo, aprofundou-se em Tai Chi Chuan e Chi Kung, refletiu sobre carma e impermanência. Aprendeu, como ensinam os textos clássicos, que 'se há caminho, não é Tao'. Seu pensamento ecoa o I Ching, que vê não o erro ou o acerto, mas as possibilidades. Para Lee, ensinar era ajudar o aluno a encontrar o próprio caminho, não impor uma forma rígida. Como dizia aos discípulos: 'Ensinar é mostrar como achar o caminho, não apenas apontar o caminho'.” |
Nas mensagens, muitas vezes emblemáticas do Mestre, o choque da cultura entre ocidente e oriente, ficam latentes aqueles que não são iniciados nas artes e filosofias milenares. Nas palavras deles, considerações simples, e de profundidade, causam o mesmo impacto que golpes, dos quais não se é necessário a defesa, apenas a disponibilidade da absorção. Diante de um mestre de desconcertante simplicidade, a modéstia do aluno, se torna montanha que está sendo escalada.
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"Na maturidade, Mestre Lee voltou às origens. Reencontrou o Grão-Mestre Chan, retomou as aulas, reabriu academias em Curitiba e Belo Horizonte, e viu seus alunos se tornarem mestres respeitados. Recebeu homenagens, como o Prêmio de Reconhecimento Cultural Lei Aldir Blanc, homenagens nas casas do povo, além de ter sua trajetória celebrada em festivais e encontros com seu nomes em cidades do Sul do Brasil. Mas mais do que os prêmios, a verdadeira marca de sua vida está na continuidade: seus discípulos e os discípulos de seus discípulos, espalhados pelo Brasil e pelo mundo, carregam a chama do Shaolin do Norte.” |
Enquanto Hollywood criava mitos como Bruce Lee ou Kwai Chang Caine, o Brasil conheceu uma versão real dessa jornada. Lee Chung Deh, com sua vida discreta, formou gerações, transmitiu valores e uniu Oriente e Ocidente numa mesma corrente, sem buscar holofotes para si. Hoje, ao olhar para trás, sua história é mais que biografia: é uma ponte cultural, uma lição filosófica e espiritual. Como no Tao, sua forma é fluida; como no Budismo, sua essência é a compaixão; como no Kung Fu, sua prática é a disciplina da vida.
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"Em suas próprias palavras, talvez esteja o resumo dessa epopeia: 'Se você não aprende a ser gente, quem você vai ser?'” |

Festival Lee Chung Deh, Florianópolis 2020.
E assim, entre espadas e palavras, entre templos e academias, entre mestres e discípulos, Mestre Lee Chung Deh permanece como precursor do Kung Fu no Sul do Brasil, e como personagem de um épico que não termina, porque continua a cada aluno que, em silêncio e dedicação, dá sequência a essa jornada. A vitória de Lee, foi ganhar respeito e amizades através de seu carisma e simplicidade.
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Manoel J de Souza Neto, é Cientista Político e aluno errante do Mestre, desde o final dos anos 80



