Compositor Guilherme Bauer - Arte da Música, Arte do Pão

Compositor Guilherme Bauer - Arte da Música, Arte do Pão

Compositor Guilherme Bauer

logo

Série: Compositores e Compositoras do Brasil

Por Luiz Carlos Prestes Filho

Entrevista: COMPOSITOR GUILHERME BAUER

 

Guilherme Bauer é carioca. Iniciou-se na música através do violino, que estudou com Yolanda Peixoto e Oscar Borgerth, de quem foi aluno na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde cursou a maioria das matérias teóricas. A partir de 1969, começou a estudar composição, recebendo de Cláudio Santoro os primeiros ensinamentos, enquanto se exercitava em análise com Esther Scliar. Guilherme considera, porém, como o seu grande mestre o compositor César Guerra-Peixe, com quem aperfeiçoou seus conhecimentos sobre música a partir de 1975. Fundador e líder do conjunto Ars Contemporânea, que no Rio de Janeiro da década de 1970 cumpriu importante papel na renovação do repertório da música de concerto. Foi várias vezes premiado em concursos nacionais. Guilherme Bauer também é artista plástico e fotógrafo.

Luiz Carlos Prestes Filho: Música de Concerto, Música Erudita ou Música clássica?

 Guilherme Bauer: Prefiro Música de Concerto. Até porque, a música popular não poderia ser erudita? A música colonial do século XVIII, com suas valsas e polcas, não seria popular? Seria música clássica colonial? Prefiro Música de Concerto, apesar de agora, frequentemente, artistas da Música Popular Brasileira (MPB) usar o termo: In Concert. A palavra erudita afasta as pessoas, deixa uma imagem como se nossa música fosse elitizada.

Compositor Guilherme Bauer

Prestes Filho: Música Eletrônica, Música Eletroacústica ou Música Acusmática?

Guilherme Bauer: Estas denominações não estão no campo de minhas atividades de compositor. Não é minha área, nunca analisei profundamente estes horizontes musicais. Inicialmente, tive até um certo entusiasmo. Mas quando fui verificando as possibilidades, ouvindo muitas composições nessas áreas verifiquei que nestes campos existe um certo desprezo em relação a organização estrutural da Música de Concerto.

As vezes seus autores querem afirmar que partiram do nada. O que não é possível. Ao ouvir concertos de música eletrônica percebo que não tem uma organização estrutural. Após as apresentações os espectadores saem, sobretudo os leigos, achando interessante. Claro, não entendem nada! Agora, é uma música muto boa para usar em filmes, para criar ambientes sonoros. O amigo Guerra-Peixe dizia que a música eletroacústica fazia as vacas travarem o leite e as plantas murcharem. Não é o meu caso, não sou tão radical.

O cd Partita Brasileira, lançado em outubro de 2002 e portador da etiqueta RioArte Digital, mais a chancela da Academia Brasileira de Música, aglomera parte da produção de Guilherme Bauer compreendida entre 1981 e 2001. Capa: quadro de Ana Maria Bauer; design: Flávia Portela

Prestes Filho: Você continua entendendo que a “produção musical atual é ignorada pela crítica”?

Guilherme Bauer: Antigamente a crítica especializada estava nos jornais. Eram textos assinados por críticos famosos. Até mesmo o Mário de Andrade escrevia sobre artes plásticas e música. Hoje o jornalista escreve sobre qualquer coisa. Vai de uma favela que foi atacada até um vernissage, um livro, uma ópera. Tínhamos espaço privilegiado no Jornal do Brasil, Correio da Manhã e Diário de Notícias. Considero que o Manoel Corrêa do Lago faz um bom trabalho.

"Brasília Contrastes" - fotografias de Guilherme Bauer

Prestes Filho: Você estudou violino. Porque escolheu este instrumento?

Guilherme Bauer: Eu me interessei pelo violino por conta do meu pai, Roberto Alfredo Bauer, que chegou a estudar este instrumento com o musicista e compositor alemão, Eneas Tannein, em Petrópolis. Eu ouvia o violino em casa e no rádio. Depois, com a famosa vitrola, vieram os discos vinis que me permitiram ver as possibilidades que este instrumento oferecia. Tentei aprender piano aos 10 anos de idade, mas não deu certo. Minha mãe, Anna Cordeiro da Cunha Bauer, que era professora de português, conhecia o Mário de Andrade, até que gostou, porque ser músico profissional no Brasil provocava dúvida na família. Foi em 1955, aos 15 anos, que fui estudar com a violinista da Sinfônica Brasileira, Yolanda Peixoto. Eu tinha ouvido uma aluna dela tocar “O Concerto para Violino” de Felix Mendelssohn e resolvi procura-la. Naquela época eu não tinha muito conhecimento sobre com quem estudar no Rio de Janeiro. Depois, entre 1961 e 1969, tive aulas com o Oscar Borgerth. Quando mudei completamente a parte técnica. Estudei muitos detalhes que me permitiram vencer as dificuldades do instrumento. Nesse período, aos poucos, fui percebendo que na área de composição eu me realizaria mais do que como violinista. Não abandonei de imediato o instrumento. Minha primeira experiência foi Orquestra da Casa do Estudante, dirigida pelo maestro Raphael Batista, que, lamentavelmente foi extinta. Ainda participei da Orquestra Sinfônica Universitária e da Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC. Também, da orquestra Ars Contemporânea, que organizei em 1977, e que liderei durante sete anos. Mas aos poucos fui parando, deixei de estudar o violino diariamente.

Na primeira fileira: Anna Cordeiro da Cunha Bauer, mãe de Guilherme Bauer, e duas tias, Nena e Lurdes. Na segunda fileira: o musicólogo e escritor, Mário de Andrade, Jorge de Lima e o desembargador Heráclito Cavalcanti (perseguido pelo golpe militar de 1930 que derrubou o presidente Washington Luís).

Guilherme Bauer: A partir do início da década de 1980 passei somente a compor. Devo reconhecer que me serviu muito ter tocado em orquestra. Isso me permitiu manejar bem as possibilidades do instrumento. Tanto que escrevi um quarteto de cordas, cadências para violino, duo e violino solo. Ter estudado, na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com o fantástico professor Oscar Borgerth, foi importante. Com ele tive muitas aulas particulares. Ele residia no edifício da Galeria Menescal. Eu achava estranho seu apartamento, que era grande, com um belo piano alemão na sala. Ficava de frente para a Avenida Nossa Senhora de Copacabana, mas não tinha problema de som, nenhuma interferência de ruídos. Penso que este isoladamento acústico permitia a um homem tão sensível morar naquele local movimentado da cidade.

Compositor Claudio Santoro - Referência fundamental para Guilherme Bauer

Prestes Filho: Claudio Santoro e Esther Scliar foram fundamentais para a sua formação. Como eles influenciaram sua obra?

Guilherme Bauer: Estudei com a compositora e professora de teoria musical, Esther Scliar, que era uma pessoa muito culta. Sempre na Rua Tonelero, onde ela morava. Depois das aulas conversávamos muito. O forte que ela passava para os alunos era o setor de análise. Eu a considero a Nadia Boulanger brasileira. Depois, estudei contraponto e composição com o Claudio Santoro, que ao voltar do exílio na Alemanha, em 1978, criou uma pequena orquestra na Casa do Estudante. Muitos anos teve que morar no exílio, por conta do Golpe Militar de 1964. Durante um curto período tive aulas com ele. Ele teve que voltar para a Alemanha e eu fiquei um tanto perdido, sem saber como continuar os estudos. Nesse período escrevi algumas peças.

Foi quando a Esther Scliar me disse: “Procure o Guerra para estudar orquestração!” No lugar de dizer composição, ela disse orquestração! (risos) Então eu fui na salinha que o Guerra-Peixe alugava na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Na porta tinha uma plaquinha: Centro de Estudos Musicais. O prédio está lá, fica ao lado do antigo “Cine Ricamar”, hoje “Sala Baden Powell”. No outro lado do corredor do andar, tinha um cursinho de ensino de inglês. Era para aquelas moças que desejavam aprender a língua estrangeira para poder conversar bem com os turistas na rua. Era muito engraçado, porque algumas delas erravam o endereço e iam perguntar ao Guerra se ele era professor de inglês (risos). Neste local tive o primeiro contato com o maestro César Guerra-Peixe. Me apresentei e disse: “A professora Esther Scliar me recomendou ter aulas de orquestração com o senhor”. Ele respondeu: “Eu não dou ala de orquestração!” Praticamente me expulsou do recinto.

Esther Scliar, professora do Guilherme Bauer

Prestes Filho: Você insistiu, voltou a procurar o Guerra-Peixe?

Guilherme Bauer: Sim. Depois de um tempo, o Guerra organizou uma orquestra que era patrocinada pela H.Stern. Eu participei tocando violino e ele era o regente. Como esse empreendimento não foi adiante, o Guerra desapareceu dos meus horizontes por um tempo, até que voltei a procurá-lo. Eu estava participando de um concurso promovido pelo Instituto Brasil-Alemanha, no qual o Edino Krieger estava no júri. Levei a partitura e ele disse: “Depois do ensaio vamos para um bar, bebemos umas e outras e eu converso com você”. Foi assim que conversamos, bebericando. Ele olhou e disse: “O problema na sua partitura é a organização da parte acústica violoncelo - contrabaixo. Aqui precisa endireitar”. Opinou sobre vários detalhes do que eu havia escrito. Disse que alguns compositores resolveram fazer uma independência do contrabaixo mas, depois, quando ouvem, entendem que não funciona. Passaram a fazer o casamento no sentido de oitavas, do contrabaixo e do violoncelo. Eu corrigi esta parte e mandei para o concurso. Fiquei em Menção Honrosa! Dai por diante o Guerra passou a me dar aulas. Foi uma mudança completa na minha maneira de ver a música, de ver a cultura do Brasil nesta área. Comecei a entender mais sobre a utilização sofisticada do folclore. Inúmeros detalhes, se eu for falar será interminável. Terminou que ficamos muito amigos. Cheguei a fazer uma série de fotografias dele. Nesse período eu me interessava pela arte da fotografia. Uma dessas fotos aparece muito em livros, jornais e revistas. Infelizmente, raramente me dão o devido crédito! Ainda bem que eu tenho os negativos para provar. Tive aulas com o Guerra na casa dele, na Ladeira Tabajaras depois que ele fechou o Centro de Estudos Musicais. Ele confessou: “Tenho vários alunos que não me interessam, vou ficar com alguns. Você pode continuar!” Desta maneira, daí para frente ele foi o meu grande mestre, meu grande amigo. Com quem pude ter contatos semanalmente até a morte dele. Foram mais de vinte anos!

O Guerra me convidava para ir a Feira de São Cristóvão, antigamente a feira era verdadeira! Depois que o poder público colocou lá suas mãozinhas, bagunçou tudo. Antes não tinham amplificadores, as barracas tinham coberturas de lona. Na feira com a maior facilidade ele apontava: “Esses cantadores são nordestinos, mas tem influência paulista.” Coisa que eu nunca tinha pensado! Ele me explicava. Curioso que o Guerra tinha voltado de Pernambuco e trouxe um sininho, aqueles que se pendura no pescoço do gado. Andava com este sino preso ao cinto. Quando nos aproximámos dos repentistas ele sacudia o sino em contratempo. Os cantadores achavam aquilo muito engraçado. Então ele pediu: “Cantem uma gemedeira que o meu aluno aqui precisa saber como se faz.” Eles foram muito gentis, atenderam o pedido. Quando souberam quem era o Guerra-Peixe virou uma festa! Lamento não ter feito fotografias dessas visitas a Feira de São Cristóvão. Teríamos como comparar com essa bagunça que está lá hoje em dia. Os repentistas fugiram porque até funk tem naquela porcaria.

O compositor César Guerra-Peixe, Guilherme Bauer e sua irmã, Ana Maria

Prestes Filho: Percebo que sua relação com o Guerra peixe era de aluno, mas também de amigo.

Guilherme Bauer: Ele sempre pedia para eu chegar por último, quando ele tinha a salinha na Av. Nossa Senhora de Copacabana. Porque depois, íamos jantar. Muitas vezes fomos ao restaurante “Marisqueira”, que fica em frente à rua Inhangá. Ali as aulas continuavam. Quantas vezes usou guardanapos para fazer suas demonstrações. Escrevia e dizia: “Veja, esse é o princípio de fuga!” Uma vez estávamos lá, chegou a cantora Elis Regina com um grupo de pessoas. Quando viram o Guerra foi só alegria. A Elis disse: “Guerra, você está com esse cabelo lindo! Deixa eu alizar para dar sorte!” Na verdade, ele tinha raspado a cabeça...

Com o Guerra também vivi momentos interessantes durante os encontros com o produtor musical, Marcos Pereira. Mas, as nossas conversas particulares que sempre foram de grande riqueza. Momentos quando ele me mostrava gravações que nunca tinha mostrado para ninguém. Sentia que ele gostava de estar comigo. Para mim, por outro lado, era como beber água de uma fonte puríssima. Pois, quem não bebeu daquela época, nunca mais poderá beber. O Guerra sabia criar um ambiente descontraído sempre. Fosse aula de contraponto, fuga, orquestração ou composição. Eram muitos assuntos paralelos à música. Tinha um método simples e direto, o aluno tinha oportunidade de inventar sem as regrinhas que terminam atrapalhando a criatividade, sobretudo em harmonia e contraponto. Com relação às famosas 5as e 8as seguidas ele dava exercícios que serviam para organizar a cabeça.

O compositor e maestro César Guerra-Peixe em fotografia de autoria do Guilherme Bauer

Prestes Filho: A Música Contemporânea abraça o seu ambiente de trabalho. Você acompanha quais movimentos de Música Contemporânea?

Guilherme Bauer: Eu já acompanhei os movimentos de Música Contemporânea. Hoje estou afastado. A última peça que escrevi foi em 2017, a pedido do Pedro Bittencourt, apresentada na 24º Bienal de Música Contemporânea de 2022: “Três peças Saxofônicas”.

"Sincronicidade" - fotografia de Guilherme Bauer

Prestes Filho: O afastamento levou você para a atividade de padeiro e de sommelier?

Guilherme Bauer: Eu sempre procurei um pão mais saudável para consumir, algo melhor do que aqueles que oferecem nas nossas padarias e supermercados. Depois que, em 2019, li uma matéria sobre o padeiro Ricardo Rocha, que debatia questões relacionadas com o fabrico de pães artesanais, entrei no site dele e me inscrevi para um curso. Neste dia, comecei a entender que para fazer um bom pão temos que encarar um processo complexo. Não é nada fácil.

Eu sempre fiz pães, mas agora eu me aperfeiçoei. Por exemplo, para fazer um pão artesanal temos que lidar com as temperaturas da massa, do ambiente e do forno. Temos que acompanhar a fermentação. Ter conhecimento. Ouvir quando a "fala" da farinha. Momento quando é necessário interromper a sova! Caso contrário surgem problemas futuros, em especial, na hora que a massa vai para o forno. São tantos detalhes físicos e químicos que se você não observar não chega ao resultado esperado... que pode ser extraordinário! Importante usar farinhas de moinho de pedra, que, infelizmente, não encontramos à venda nos supermercados. Essa farinha é fresca, viva! Agora, sobre o vinho o seguinte. Para mim sempre foi um desafio. Sempre busquei aprender como saborear um vinho? Como realizar o melhor casamento deste com um alimento? Por conta desse questionamento, resolvi fazer um curso na Associação Brasileira de Sommelieres, da qual hoje sou o sócio com a matrícula nº16413, desde 2018. Às vezes, estamos tomando um vinho e sentimos que ele não tem bom sabor. Na verdade, é que o vinho não é exatamente aquele apropriado para com aquele prato que está sendo servido. Beber por beber vinho, não tem sentido!

Compositor Guilherme Bauer

Prestes Filho: Você então, nos últimos anos, mergulhou na complexidade do vinho e do pão?

Guilherme Bauer: As tensões na música são as mesmas que encontramos no saborear de um vinho e na arte da panificação. Caso você não saiba lidar com essas tensões, caso não faça exatamente como se deve fazer, não chegará a um resultado harmonioso. Não conseguirá fazer a distensão, você bagunça tudo. A técnica da escrita de uma partitura exige conhecimento. No pão e no vinho acontece o mesmo.

Pão de farinha de moinho de pedra - obra do compositor Guilherme Bauer

Prestes Filho: Você organizou o grupo Ars Contemporânea. A proposta daquele grupo continua atual?

Guilherme Bauer: Nos concertos do Ars Contemporânea apresentamos músicas eletroacústicas. Inclusive, uma muito interessante para trompa e sons eletrônicos. Quem executou foi o trompista americano Thomas Tritle, que era da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), depois ele voltou a morar nos Estados Unidos. Realizamos algumas peças com música pré-gravada para clarineta na Bienal de Música Contemporânea de 1977, quando foi o último concerto do Ars Contemporânea. Estávamos em pleno regime militar, tinham aqueles que afirmavam que esse tipo de música, com letras do Berthold Brecht, falando sobre ditadura, e do Henrik Ibsen, com gozações sobre autoritarismo, não deveriam ter espaço. Falaram para os músicos: “Olha, isso é um perigo, vocês vão viajar para os Estados Unidos. Tomem cuidado.” Claro que surgiu uma apreensão. Somando aos problemas de ensaios, falta de verbas... me levaram a encerrar o conjunto. Era um desgaste muito grande. Inclusive, eu tive que participar com recursos próprios, porque se dependesse de ajuda não daria para fazer praticamente nada. Mas reunimos pessoas de primeiríssima qualidade como David Evans, primeiro flautista da OSB; o Tsunemiche Nagamine, no oboé (ele voltou para o Japão); Luiz Viana, na clarineta, Vânia Dantas e Mara Almeida ao piano; Ana Maria Scherer, violista da Orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro; e Luiz Fernando Zamith e uma musicista chinesa (não lembro o nome) no violoncelo.

Sem querer desmerecer os brasileiros, desejo destacar que os músicos estrangeiros valorizavam muito a música brasileira. Como fizemos uma série de primeiras audições de obras nacionais, eles revelavam muito interesse! Queriam entrar em contato com a música contemporânea brasileira! Fizemos a estreia de uma obra do Guerra-Peixe. Ele fez a transcrição especialmente para o nosso conjunto. Nessa ocasião ele regeu e a solista foi a soprano Maria da Glória Capanema, filha do Ministro da Educação de Getúlio Vargas, durante o período de 1934 a 1945, Gustavo Capanema.

Capa do disco vinil de Maria Glória Capanema, regente César Guerra-Peixe

Prestes Filho: No seu período inicial você seguiu a estética do atonalismo. Depois adotou uma linguagem livre, que tem como referência tradições sonoras brasileiras.

Guilherme Bauer: Fui influenciado pelas obras do Béla Bartók, do Alberto Nepunuceno, Henrique Oswald e, claro, do Guerra-Peixe!

Prestes Filho: Você disse certa vez que as suas primeiras composições, deste segundo momento, “pareciam de um estrangeiro tentando fazer música brasileira, mas aos poucos ficaram mais originais”. Você continua entendendo que “a música brasileira é a mais rica em ritmo do planeta”?

Guilherme Bauer: Continuo com a mesma opinião. Nossos compositores poderiam aproveitar mais a riqueza musical brasileira! Estudei sempre em nosso país, aqui encontrei a nata do ensino de música. Estudar no estrangeiro, em instituições de renome e com professores conhecidos muitas vezes nada significa. Não podemos nos afastar das nossas raízes. Eu não me afastei. Mas para tanto, não podemos somente ouvir discos, gravações, o compositor deve ir aos locais onde a música brasileira está presente. Por exemplo, não precisa ir muito longe, para o subúrbio.

Se você for na Praia da Urca, é possível encontrar música de grupos da umbanda e do candomblé que são muito interessantes. Mas todas as vezes que eu fui lá - no Ano Novo ou durante outros festejos - nunca encontrei parceiros da minha área da música contemporânea. Essa parte de ver e ouvir ajuda a solidificar um tipo de linguagem brasileira. Mas desde a fase tonal me interessei na pesquisa do folclore e também, da boa música popular, a não descartável. Fiz algumas viagens a Paraty, que tem a festa do divino. Por isso, na segunda fase passei a utilizar fragmentos rítmicos para melhor comunicação.

"O Passado e o presente" - fotografia de Guilherme Bauer

Prestes Filho: Como você traz a identidade nacional na sua obra? Como você insere o colorido brasileiro dentro da complexidade da sua música?

Guilherme Bauer: Na obra “Partita Brasileira” (1994-2001) eu apresento a minha profunda relação com a música de nossa terra. São cinco peças para violino que eu dediquei ao violinista Erich Lehninger. A quarta parte eu denominei de “Abaianado”. Tem relação direta com o baião. No último movimento, onde eu faço uma homenagem ao Guerra, é o “Rabecando”. Neste eu transponho o início da peça do amigo - “Rabeca Triste”. Nos outros movimentos, nos títulos – “Preludio”, “Clamor” e “Canto” – não dou referências diretas. Mas ouvindo, dá para perceber a influência brasileira na parte melódica.

Claro que o compositor tem que sofisticar, você não pode tirar da fonte e simplesmente transcrever, reproduzir. No “Trio” para violino, violoncelo e piano (1980), no segundo movimento, tem um toque que eu ouvia na minha casa no bairro do Leme, em Copacabana. Tem elementos enérgicos do Coco de Embolada ou Coco de-Improviso. Também referências de um grupo que cantava e batucava com tambor e agogô, no morro da Babilônia. O Guerra gostava muito desta peça, levou para mostrar para seus alunos de Belo Horizonte, onde trabalhou vários anos, para mostrar possibilidades de fazer uso de certos elementos dentro de uma linguagem não muito convicta, que está em processo de transformação.

Prestes Filho: Quais seriam exatamente as fases de sua trajetória?

Guilherme Bauer: No início eu estava muito impressionado com o atonalismo, até a década de 1970. Mas eu já ia enxertando novos elementos. Hoje vejo que ficava parecendo uma colagem. Por exemplo, o conjunto Ars Contemporânea estreou a peça “Espelho Provisório”, baseado num texto da Olga Savary. Foi para Orquestra de Câmara, para uma atriz declamar e para uma cantora. Essa foi uma das primeiras experiências que não desejo divulgar mais. Até rabisquei as partituras. (risos) Mas as mudanças vieram em consequência dos estudos. Nunca usei o folclore ou a música urbana de maneira direta. Busquei imprimir minha leitura, minha visão. O “Quarteto de Cordas nº2”, com o qual ganhei o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) seria um momento inaugural de uma de minhas fases.

Ronaldo Miranda, Edino Krieger, David Korenchendler, Ricardo Tacuchian, Ernani Aguiar e Guilherme Bauer

Prestes Filho: Você idealizou o projeto de divulgação de música nacional: “Rio Arte Digital”. Ao todo valorizou obras de mais de mais de 80 compositores. Com a distância dos anos como você avalia estas realizações?

Guilherme Bauer: Quando há interesse político dá para fazer alguma coisa. Tenho aqui que citar os nomes dos prefeitos do Rio de Janeiro, primeiro o Cesar Maia e depois o do Luiz Paulo Conde. Eles apoiavam as iniciativas do presidente do RioArte, Hélio Portocarrero. Por outro lado, no Instituto Municipal Rio Arte tinham pessoas que conheciam e valorizavam a música brasileira.

O projeto Rio Arte Digital fez encomendas para uma série de compositores, o que possibilitou a realização de concertos e gravações. Com certeza foi um trabalho importantíssimo liderado pela sua produtora Maria Julia Vieira Pinheiro. Ela abraçou a iniciativa com entusiasmo. Conseguiu reunir grandes profissionais para atingir os objetivos programados. Penso que foi a primeira vez que se gravou tanta música brasileira contemporânea em CD.

Prestes Filho: A Academia Brasileira de Música (ABM), onde você ocupa a cadeira nº17, desempenha papel importante na difusão da música brasileira. Você entende a instituição deve encaminhar reivindicações sociais e participar ativamente das lutas populares?

Guilherme Bauer: Penso que é uma obrigação da Academia Brasileira de música (ABM), caso contrário fica um órgão morto. Uma espécie de museu. Quando eu entrei para academia, no meu discurso de posse, destaquei que a instituição deveria ter uma ação política. Como outras academias que tem representatividade muito grande. Sem um posicionamento firme a ABM pode se transformar num trabalho voltado para um grupinho fechado, sem expressão. Por mais que publique livros, realize reuniões e concertos, não se consegue grande alcance social. Temos que cobrar dos setores publico e privado soluções para os problemas nacionais e para a crise da Música de Concerto.

Posse de Guilherme Bauer na ABM

Prestes Filho: O espaço para a Música Contemporânea no Brasil está reduzido. São poucos patrocínios que a iniciativa privada disponibiliza e as políticas públicas estão cada vez mais limitadas. Quais perspectivas para os próximos anos?

Guilherme Bauer: As Bienais de Música Contemporânea surgiram na década de 1970. Os compositores emprestavam suas obras para prestigiar esse evento. Os interpretes tinham um pequeno cachê, as orquestras participavam porque seus músicos tinham salários fixos. Os compositores passaram a receber valores, durante a gestão de Leonel Brizola, do Partido Democrático Trabalhista – PDT, que entre 1993 e1996 governou o Estado do Rio de Janeiro. Depois, a partir de 2003, o governo federal, durante a gestão do presidente Luís Inácio Lula da Silva, os compositores passaram a receber encomendas. Nesse período (2003-2013), com apoio de um colegiado de mais de 50 compositores, passamos a receber encomendas Mas, entre os anos de 2019 e 2022, o governo pouco ou quase nada investiu. Agora estamos voltado. Em 2024 a Bienal voltou reestruturada positivamente.

Prestes Filho: Por falar em encomendas, a obra “Celebração Sinfônica” (2017) foi encomendada quando a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) comemorou os 70 anos de fundação. Como foi o processo de trabalho?

Guilherme Bauer: No início lembrei do Beethoven que escreveu em 1822 “A Consagração da Casa”, para a inauguração do Theater in der Josefstadt de Viena. Obra feita com se fosse um grande prelúdio e fuga. Por isso, a semelhança no título. Nesse trabalho eu uso uma série de ritmos brasileiros, inclusive, tem alguns trechos de flautas, como se fossem aquelas dos Caboclinhos do Recife. Grupos que tem entre seus instrumentos o flautim. Trago cadências brasileiras para momentos mais meditativos e outros bem ritmados. É um trabalho que tem uma grande solidez estrutural.

Prestes Filho: Você lecionou composição e orquestração na Universidade Estácio de Sá e na Escola de Música Villa-Lobos, lecionou harmonia, contraponto, fuga e composição. Como professor, você confirma que no Brasil está surgindo uma nova geração de compositores?

Guilherme Bauer: Entre os alunos que começaram comigo na Universidade Estácio de Sá, destaco o Rodrigo Marconi. Agora, muitos que estudaram comigo na Escola Villa-Lobos, terminaram seguindo para estudar composição na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e outros foram para a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Os compositores Guilherme Bauer e Harry Crowl com Luiz Carlos Prestes Filho