Urgências Literárias - Pé Frio 1

Urgências Literárias - Pé Frio 1

Excelência na Emergência

Urgências Literárias

Por Arthur Guimarães

PRÓLOGO

Após alguns plantões no Pró, imaginei escrever um livro. Mas depois achei que alguns contos seriam suficientes. O que me chamou a atenção para essa urgência literária era a riqueza de variedades de ocorrências que naquele ambiente se desenrolam.

A frequência de fatos é,lógicamente, vinculada à característica do Hospital. Considerado pela encadeada rima de: referência em excelência na emergência, é esperado que seja cenário natural para situações extremas. Senti isto na pele logo nos primeiros dias que me tornaram  alvo de jocosas insinuações: de que eu seria portador de um sinistro estigma que me acompanhou por uns bons meses e será tema de outro capítulo. Neste, contarei meu princípio.

CAPÍTULO I

“Batismo de fogo”

Após período de estágio e avaliação estava finalmente autorizado pela casa a trabalhar na emergência dando plantões como coringa (substituto do médico efetivo para aquele horário). No meu primeiro plantão, assim que assumi, não tive muito tempo para conjecturas:

- Doutor! Tá chegando agora? Que bom! Tem uma saída para Laranjeiras...

Em 15 minutos estávamos na porta do prédio. O elevador já estava reservado, aguardando-nos. A porta do apartamento também. Logo na entrada fomos recebidos por aproximadamente 14 pares de olhos em uma sala pequena. Retifico: 13 pares. Um deles mirava o teto sem expressão de vida. Era este o motivo do chamado. Uma velha senhora que exibia sinais evidentes de que ficara desprovida de oxigênio e circulação por período suficiente  para caracterizar a irreversibilidade do quadro. À sua volta agitavam-se várias senhoras de igual ou pouco menor idade. Ao fundo uma negra corpulenta de braços cruzados olhava-me séria fixamente. Suas vestes simples e a concha de feijão que segurava, denunciavam sua função na casa. Ao lado da velha senhora uma mocinha ruiva, lacrimosa, segurava sua mão pendente. Foi ela quem começou a relatar o ocorrido, enquanto eu buscava debalde encontrar alguma partícula de vida naquele corpanzil inerte:

- Fui eu quem chamou vocês. Desculpe, eu fiquei muito nervosa. È que a vovó começou a gritar que estava com dor no peito e foi ficando muito agitada, suou muito e começou a ficar com a respiração difícil. Nós a pusemos aqui no sofá. Ela chegou a ficar roxa e respirando muito rápido, mas depois ela se acalmou. Eu liguei para vários médicos, mas nenhum podia vir aqui. Um amigo da minha tia deu o telefone de vocês, mas acho que agora que ela dormiu já está tudo bem...desculpe ter chamado vocês à toa.

À toa, fiquei eu quando percebi que ninguém havia se dado conta da situação. Ao fim do relato eu já movimentava o estetoscópio automaticamente e estava com o pensamento longe daqueles sinais clínicos ausentes, pois, já convencido de que nada mais havia a fazer, só me restava convencer aquelas pessoas de algo que elas não pareciam estar muito dispostas a aceitar.

- ..sinto muito. Ela faleceu.

O efeito destas minhas palavras soou como se eu tivesse dito a uma multidão de sedentos:

- Olha! Tem água aqui!

Várias correram, outras pularam, e posso jurar que algumas voaram em direção à falecida; chacoalhando-a, tentando chamá-la a desmentir aquele que ousava duvidar de sua vitalidade, deslocando, desta forma,  a pobre ruivinha, agora novamente aos prantos, para a periferia da sala. A negra permanecia impassível com seu olhar penetrante fixo em mim. Quando perceberam a inutilidade dos seus gestos voltaram-se para mim em tom imperativo...quase uníssono:

- Doutor, reanime-a!

- Dê aqueles choques!

- Faça as massagens!

- Não fique parado, dê-lhe remédios!

- Ela estava viva até agora! Não a deixe morrer! – Implorou dolorosamente a ruivinha.

A negra permanecia imóvel, fitando-me.

Era a minha vez de explicar que nada mais havia a fazer, que a senhora já mostrava os tais sinais de irreversibilidade, etc. Seguiu-se uma série de questionamentos, alguns duros, já tendendo a ameaças. Enquanto argumentava buscando as palavras mais apropriadas, resistia às duas maiores tentações de quem está nesta situação: primeiro a de expor verbalmente de forma cruentas os sinais inexoráveis de morte tardia: ausência de pulsos, batimentos cardíacos e respiração associados a dilatação inerte das pupilas (sinais de inatividade cerebral) e coloração vinhosa da pele na porção inferior do corpo contrastando com palidez intensa da porção superior, a indicar que a força da gravidade era a única pressão que agia naquele sistema circulatório há pelo menos meia hora. A segunda tentação era a de simular farsantemente uma tentativa de ressuscitação a fim de convencer a família de que a finada realmente falecera, atitude esta que, embora me causasse repulsa, já me via compelido a  considerar visto a insistência das argüições. Já estava com a voz enfraquecida , indicando que iria ceder à segunda tentação para horror da equipe que me acompanhava.

- Senhora, acredite: eu faria tudo o que fosse necessário se eu enxergasse alguma chance de sucesso. Iniciar os procedimentos de ressuscitá-la agora seria expor todos a uma encenação desagradável e inútil.

- Mas Doutor, se ela sofreu esta parada cardíaca agora, e vocês demoraram menos de 15 minutos para chegar, qual o direito que o senhor tem para decretá-la morta e nada fazer?

Esta argumentação foi o que faltava para derrubar a minha resistência. Ficou bem claro que se não procedesse a farsa requerida iria ter problemas sérios. Quem estava em jogo agora já não era mais só a integridade física da morta. Minha carreira e credibilidade se priorizavam. Melhor agir rápido.

Visto nada mais haver  o que fazer senão o que me exigiam, voltei os olhos para o auxiliar de enfermagem para solicitar o material de reanimação, quando uma voz grave e decidida me interrompeu:

- Dotô, dá licença, posso falá uma coisa? – Não sabia porque aquele sotaque afro me parecera tão doce.

- Pois não?

- Dotô! Eu aqui vendo elas correndo prá lá... prá cá...mas prá mim, quando a menina resolveu chamar a ambulância, ela já tava morta há uns 40 minutos...

Parecia que a Adrenalina da seringa havia sido injetada em mim. Aquelas palavras me reanimaram. Minha vontade era de dar dois beijos estalados naquelas bochechas gorduchas. Mas a situação exigia sobriedade. Além disso, olhares inquisidores esfolavam, fuzilavam e açoitavam aquela “atrevida”. Era a hora de defender a minha amiga. Fortalecido, tornei à carga:

- Estão vendo? Não é possível que ela tenha falecido agora. Olha só: o sangue está todo depositado embaixo dela. Isso só acontece depois de a pessoa ter falecido há muito tempo...- Pronto! Tinha falado! Havia cedido à primeira tentação. Descuidei-me e deixei escapar o argumento pavoroso e frio, mas suficiente para o convencimento de todos os presentes. Tentei amenizar:

- ...ela morreu tão serenamente que vocês nem perceberam...

- Dá licença! - Era o meu anjo da guarda abrindo espaço para voltar à cozinha. Atendendo ao apito da panela de pressão ou talvez em protesto pela minha última colocação. –Claro! Se pudesse jogaria pétalas no seu caminho!

Seguiram-se as informações rotineiras a cerca dos procedimentos fúnebres.

De volta ao lar da sala de emergência, um colega que se encontrava na recepção me interpelou:

- E aí? Trouxe? (o paciente)

- Não, estava morta!

- Pô! Primeira saída...óbito! Por que cê demorou tanto, então?

Desfiei o rosário, contando até a intervenção da minha heroína. Aquele comentário ficou na minha cabeça:- Primeira saída...óbito! Mal sabia o que estava por vir...

Crisma de fogo

Aquele plantão terminou algumas horas depois, sem outro atendimento e sem deixar saudades. Deveria retornar à noite para outra substituição para a qual havia sido requerido.

Cheguei à noite de banho tomado. Jantei. Fiz dois atendimentos na sede, e quando nos preparávamos para nos recolher ao dormitório, o telefone tocou: Doutor, SAÍDA! para Gávea.

Dor no peito. O paciente me recebeu no quarto. O eletrocardiograma acusou: Infarto. Enquanto preparávamos a remoção para o hospital, o homem desmaiou, convulsionou. Parada cardíaca. Desta vez todos os esforços foram empregados. Após uma hora e meia de tentativas, encerramos os esforços, abatidos pela sensação de impotência, buscando a redenção no consolo de que todo o possível havia sido feito. Após comunicada a familia, deixando-a ao sofrimento que lhe cabia, retornamos à sede. Fiz o relatório, e fui ao dormitório exausto. Não acendi a luz. Um dos que estavam deitados, sem se mover, perguntou-me:

- E aí? Trouxe?

- Não, morreu antes de embarcar na ambulância.

- Pô! Cê tá de lascar! Duas saídas, dois óbitos!

Tive que dormir com essa. E dormi pesado até de manhã, quando fui acordado pela recepcionista que deixava seu plantão:

- Doutor, o Sr. Vai continuar? (no plantão)

A revelação

- Vou

- Então ... tem uma saída. O Sr. É que vai?

- É urgente?

- É.

- Tou indo.

Lavei o rosto, escovei os dentes correndo e fui. Velhinha, estava morta na cama, a família só queria a confirmação para que o médico dela fornecesse o atestado de óbito. Sem contestação. Sem problemas...Voltamos. Fiquei na expectativa da famosa pergunta ao chegar. Não deu tempo. A recepcionista me esperava aflita:

- Chegou uma senhora agora passando mal, o senhor pode atender?

- Claro, vou lá.

A senhora estava agônica. Logo chegaram outros colegas. Reanimação, massagem, intubação, trombólise, nada adiantou ...

Fui ao almoxarifado, peguei o atestado de óbito. Enquanto preenchia, aquele primeiro colega me abordou:

- Artur, quantas saídas você já fez?

- Três.

- E quantos óbitos ...?

Seu silêncio foi evidenciador daquela macabra e desproporcional estatística. Não havia como contestar...eu era um “pé-frio”.

Venha catetear!