O Livro

O Livro

Figura Sentada de Alekssandr Matveev

O LIVRO

Por Luiz Paixão

Fotografias da obra do escultor Alekssandr Matveev

Seus olhos traduziam as letras e palavras que formavam imagens diante de si; quase podia tocá-las, sentir sua espessura, sua maciez ou aspereza. A mulher andava sozinha pela noite e ele acompanhava seus movimentos, como ao seu lado, quase sentindo seu respirar. Triste... tão triste aquela mulher. Tentava desvendar-lhe os mistérios e pouco sabia de sua vida – apenas que estava triste e que o marido estava morto. Em cada frase, um pouco mais; em cada palavra, a sensação de compartilhar aquela vida daquela mulher daquele homem que estava morto naquela casa que ele ainda não sabia onde... Só isso ainda sabia: o marido estava morto; a mulher, triste. Nem sabia como, nem sabia nomes, nem sabia além dos dois ou três parágrafos lidos. Indagava. Criava a imaginação de tudo, mas não traduzia, pois as letras não diziam ainda o que viria a ser. Se o marido estava morto, por que a mulher não estava ao seu lado, velando o corpo, carpindo a dor, chorando seu sofrimento? Ele sentia no peito o apertar, comprimindo o coração. A mulher agora parou junto ao rio. A noite escura. Lua apagada. Sentou-se e ali ficou por um tempo. Nem soluçava. Nem escorria lágrimas dos olhos. Triste. Olhava, apenas, a água correndo, embalada pelo silêncio quebrado pelo enxurro da corredeira. Angustiante. O homem sentiu novo aperto no peito.

A mulher teve um sobressalto, olhou em volta, respirando ofegante e escondeu o rosto entre as mãos e as pernas, como querendo não ver. O homem sentiu o calafrio da mulher subir-lhe o corpo e seus pelos arrepiaram. Ainda não sabia o que havia acontecido com a mulher, que continuava num gemido, entrecortado por soluços. O homem olhou em volta, apreensivo, como para confirmar. Não viu nada. Sentiu, no entanto, um incômodo qualquer... das palavras e das frases que contavam.

A mulher ergueu novamente os olhos como que assustada por visão ou sentimento que ele não sabia. Levantou-se lentamente e seguiu pelo caminho de onde viera. Um pouco mais adiante parou em frente à casa. Já não tinha noção de tempo; nem sabia ao certo o que sentir; nem sabia se o que estava acontecendo era sonho. A realidade se confundia... Se entrasse toparia com o marido morto, ou tudo fora apenas fruto de alucinação, visão do que não há? Por que, então, ali, agora, não conseguia entrar? Sequer a porta estava trancada. Um facho de luz rasgava o chão. A fresta que separava a porta e o portal não era suficiente para desvelar seu interior.  O homem quase a tomou pelas mãos para que ultrapassasse a soleira... Chegou mesmo a ter medo e uma dupla sensação entrou em choque em seu espírito: se por um lado queria muito desvendar os fatos, por outro, temia a revelação do que se construíra naqueles quartos, salas, banheiros, cozinha...

O homem sentiu vontade de pular as páginas e descobrir de vez o interior da casa. Conteve-se e, ao iniciar o próximo parágrafo, a mulher abriu lentamente a porta e entrou. O clarão da luz invadiu a área externa e ele sentiu-se ofuscado pela claridade. Instintivamente, esfregou os olhos para novamente se acostumar àquele novo ambiente. Olhou em volta e não viu o corpo do marido. A mulher não estava mais na sala.

O homem experimentou, então, alguns passos pelo interior da sala, procurando pela mulher que, do nada, desaparecera entre os cômodos. Poderia também encontrar o corpo do marido. Tentar entender o que acontecera. Avançou em direção ao que julgou ser a cozinha. Cruzou o corredor e, ao fundo do cômodo, identificou um enorme fogão à lenha, típico daquelas casas de fazenda.

A poça vermelha revelou-se antes mesmo de o homem deparar-se com o corpo estendido no chão. A imagem não era nada bonita. Várias perfurações no peito, pescoço, abdome. Nos braços, os cortes demonstravam que ele teria tentado se proteger. Deparou, então, com a faca suja de sangue, que estava jogada ali por perto. Observando o corpo percebeu que o marido só poderia ter sido assassinado. O homem pensou, então, na mulher, e de como se dera a briga entre os dois, e de como ela, num acesso de ódio e sem domínio da razão, esfaqueara brutalmente o marido. Mas nada sabia, porém; podia apenas imaginar... e imaginando foi que se apercebeu de que estava acusando a mulher, sem nem saber ao certo, sem pensar ao menos nas outras tantas possibilidades.

Tornou a olhar em volta e decidiu procurar... Seguiu pelo corredor, se encaminhando para o outro lado da casa, olhando pelas portas entreabertas... no último quarto, lá bem no fundo, descobriu a mulher sentada sobre a cama, encolhida, acuada, o pavor estampado nos olhos paralisados. Não emitia nenhum som, não movimentava um músculo sequer. O homem aproximou-se e, olhando o estado da mulher, compreendeu que não havia sido justo, julgando-a e até mesmo condenando-a pela morte do marido. Ela não seria capaz. Não aquela que ali estava, frágil, indefesa, num abandono absoluto. Estendeu a mão como que a querer tocar seu rosto... Virou a página do livro...

Sua mente, por um momento, perdeu-se da leitura. Não conseguia acompanhar as palavras. Alguma coisa parecia dizer que a mulher era a culpada, que ela, sim, matara o marido tão cruelmente. Podia imaginar as palavras encadeadas: “então ela aproximou-se por traz e desferiu o primeiro golpe, o marido virou-se e tentou se proteger e, então, sentiu nova estocada e mais outra e ainda outra e mais ainda outra e outra e outra... até cair para não se levantar mais... furiosamente ela continuou esfaqueando o seu corpo... peito... pescoço... abdome...”. O homem não queria e não podia aceitar esse final. Por isso, não lia; se recusava em continuar a leitura e saber daquilo que não queria.

Seus olhos, sem que os pudesse comandar, voltaram-se para o livro e se entregaram novamente à leitura. Avidamente, como quem engolia as palavras, desvendava a história e sabia da mulher, aquela que estava sentada na cama e que matara o marido. Ficou sabendo, então, das marcas em seu rosto, em suas costas, em seu peito, a cicatriz no seio que nunca mais se apaga. A mulher não se acostumava a apanhar, embora o marido sempre batesse nela, talvez por nada, talvez por uma palavra solta ao acaso, displicente, talvez por um olhar perdido no tempo. Tudo era motivo. O marido se acostumara a bater. E a mulher, o que sabia era o sofrimento, e não tinha como sair daquela casa e sumir no mundo para não mais voltar. E naquela casa imensa não tinha onde se esconder. Em seu quarto chorava em silêncio, pois o marido não admitia lágrimas ou soluços dentro de casa.

E o homem se revoltava com a dor da mulher. E a cada frase seu peito doía, como devia doer o peito da mulher. E devorava as palavras e, nelas, alimentava seu ódio a quase chorar, assim como a mulher que chorava no quarto daquela casa imensa. O homem, agora, queria saber tudo. Saber cada detalhe, todos os motivos e as consequências a que o marido, ele, sim, provocara e recebera em troca. Ele, que não merecia viver. Que, se estava caído ali no chão, empapado em sangue, foi porque fez por merecer. Agora, o homem entendia que a mulher estava certa e a defendia com unhas e dentes. Embora ainda não soubesse tudo, como de fato ocorrera, sabia, contudo, que ele próprio jamais se acostumaria a apanhar.

Apenas mais uma ou duas páginas e seu coração voltaria a bater em seu compasso normal, e sua respiração, agora ofegante de apertar o peito, retomaria seu ritmo. A mulher estava ali, na cozinha, quando o marido chegou. Ela só o percebeu quando ele a pegou por trás, curvando-a sobre a mesa, levantou sua saia, e brutalmente arrancou sua peça íntima. Ela tentava reagir, mas não tinha forças para lutar e arrancá-lo de cima de suas costas. Ela sentiu a dor e seu grito foi ouvido pela noite afora. Chorava e gritava. O marido urrava de prazer. Ela implorava. Ele sodomizava e babava e gritava em seus ouvidos palavras porcas, e quanto mais sodomizava mais babava e mais gritava. A mulher gritava também, e chorava, e implorava e não tinha como fugir e sua mão encontrou a faca sobre a mesa e o marido deu um grito de dor... e o marido urrava e gemia e pedia e a mulher chorava enquanto desferia os golpes...

A mulher, então, entre horror e medo, largou a faca e se afastou do corpo caído, como que fugindo. A mulher levantou-se com dificuldade, escorando-se na parede e saiu dali e continuou andando e saiu de casa... A mulher agora parou junto ao rio. Sentou-se e ali ficou por um tempo. Nem soluçava. Nem escorria lágrimas dos olhos. Triste. Olhava, apenas, a água correndo, embalada pelo silêncio quebrado pelo enxurro da corredeira. Angustiante. O homem aproximou-se da cama. A mulher encolhida, acuada, o pavor estampado nos olhos paralisados. Não emitia nenhum som, não movimentava um músculo sequer. O homem sabia que para aquela mulher a noite seria longa; a mais longa noite de sua vida... Ele, então, sentou-se ao seu lado... fechou suavemente o livro... e ali ficou em silêncio... olhando nada...

Luiz Paixão é diretor de teatro, dramaturgo, poeta e escritor

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