Tentativas de esclarecer trinta e cinco

Do livro Ofícios de um canto possível – versão lírico-poética do Partidão 1922-1947, de Luiz Paixão
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I
A mentira em verdade feita e repetida
até que a verdade forjada
se imponha sobre a mentira
que deixa de ser mentira
anunciando a grande verdade
que verdadeiramente é mentira
então a verdade
deixa de ser verdade
e passa a ser verdade da mentira
que se acredita verdadeira
pois de tantas repetidas vezes repetida
ninguém mais acredita
que na verdade
a verdade nada mais é que é mentira
Soldados rebelados do 3º Regimento de Infantaria, no Rio de Janeiro
II
a
aliança não é o partido
a bandeira libertadora
é vontade
nacional
III
de tantos campos
e
máquinas
donde sobrevém
a consciência
do que brota
no coração
da revolta
uma certeza
se faz clara-cristalina
e rápido se espalha
como única
possibilidade possível
IV
a luta
revolucionária
não é crime
contra a humanidade
luta revolucionária
é desejo de libertação
dos povos
que é mentira
seja reparada
pois uma
não se confunde
com a outra
e o inverso contado
e denegrido
por tempos afora
pode por fim
se esclarecer
na tradução real
do fato
Soldados rebeldes sendo conduzidos à prisão de Ilha Grande
V
natal conheceu
a nova história
dos homens livres
natal não soube
do cancro da fome
nem da sombria
clausura do
desespero
e
miséria
tempo foi
(esses dias em natal)
de nova paixão/canção
armada
em novos tons
natal sobreviveu pouco
marcas profundas
porém
e
entanto
ficaram marcadas
tatuadas
na lembrança de alguns
ao menos
um dia
talvez
natal em relato
contará desses dias
desses poucos dias
que o povo de natal
conheceu a nova história
dos homens livres
talvez um dia
VI
surpresa não houve
como se conta
na madrugada
da praia assaltada
o alerta era já conhecido
nas guarnições
nem houve
a morte no sono
em fria
e
calculada covardia
morte
morreram
(não se oculta)
dos lados dois
pois na luta
guerra de revoluções
a morte caminha sempre
sem saber
que caminhos certos seguir
VII
entre recifes
gregório lutou
dominou
prendeu
e foi preso
dominado
e lutou
contra a morte
e a tortura
entre recifes
gregório lutou
quase só
entre recifes
o sonho
também não vingou
VIII
cada calabouço
abarrotado
não se cabe mais
de tantas prisões
ancorado plácido
na baia
(narrado em ramos
e prosas de graciliano)
pedro II
como nova bastilha
abriga horrores
e
dores
perseguição indiscriminadamente
entregradeia
humilhação e espancamento
entre socos e sevícias
IX
trinta e cinco
se fez sozinho
das condições improváveis
foi feita certa-certeza
de libertação
do remanso tornado ressaca
o povo não foi tempestade
de aumentar as águas
nem levantou seu grito
em trovão de estrondo
pois que aí então gritado
somando e multiplicando
mil outras vozes em eco
de resposta única
a correnteza invertida
em renova ressaca
não teria domínio
o erro f
oi não saber
o povo
o grande erro
de
trinta
e
cinco
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Luiz Paixão é Dramaturgo e Doutor em Literatura Brasileira pela UFMG.